“O Brasil é o único país do mundo que tem na verdade quatro instâncias recursais”. A constatação foi feita, em 2010, pelo ministro Cézar Peluso, na época presidente do Supremo Tribunal Federal. Entendia que alimentando a corrupção sistêmica está o fato da existência dessa deformação jurídica. Defendia que, para diminuir a impunidade, acabando com a proliferação de recursos nos tribunais superiores, era urgente mudar a Constituição, estabelecendo que os processos se conduzissem nos Tribunais de Justiça dos Estados e nos Tribunais Regionais Federais. Recursos ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal), terceira e quarta instância, para rever e anular a decisão, enquanto não fossem julgados, a pena aplicada na primeira e na segunda instância seria cumprida pelo réu.

Em 2016, o STF aprovou jurisprudência nos termos defendidos pelo ex-ministro Cezar Peluso. O réu condenado na segunda instância da Justiça começa a cumprir pena de prisão, fortalecendo o combate à corrupção no Brasil. Antes o condenado poderia continuar livre até se esgotarem todos os recursos no Judiciário. A dilação de processos nas várias instâncias judiciais, para quem dispõe de recursos econômicos, operava com grande eficiência. Lamentavelmente, o garantismo processual não protege os réus pobres que não podem contratar bancas jurídicas e tem os seus direitos postergados, demonstrando que o conceito de “Lei para todos” é bastante seletivo.

Nos países desenvolvidos e modernos a prisão já decorre de pena aplicada na primeira instância. Nos EUA, o ex-governador de São Paulo, José Maria Marin, está preso há dois anos por decisão de primeira instância. A origem é a corrupção na FIFA e na CBF (Confederação Brasileira de Futebol), quando exercia a presidência da entidade máxima do futebol brasileiro. O “caso Marin” não é exceção, é norma constitucional defendida pelo judiciário norte americano.

Agora, no Brasil, em ato de suprema insegurança jurídica, alguns ministros do STF e as bancas advocatícias defensoras de figuras de alto poder aquisitivo e de grupos econômicos e políticos envolvidos em ilicitudes, são vozes ativas na defesa da revisão da jurisprudência aprovada em 2016. Se para proteger quem tem poder o Supremo anular a jurisprudência, por ele próprio aprovada em plenário, estará determinando um futuro sombrio para o Brasil.

Em ocorrendo o recurso na jurisprudência fixada pela própria Corte, estará justificando o desabafo do ex-ministro do STF (2004-2010), Eros Grau: “O Supremo se transformou num grande espetáculo televisivo. Quero esquecer aquilo da minha vida”. Disse que não gosta de ser apresentado como ministro do STF, preferindo ser apresentado como professor da Faculdade de Direito da USP, do Largo de S.Francisco, demonstrando que o ativismo judicial e o culto à luz dos holofotes vêm balizando a atuação de muitos ministros.

O articulista Demétrio Magnoli (Folha de S.Paulo, 24-3-2018) exemplifica: “Jogaram no lixo a lei do impeachment para conservar os direitos políticos de Dilma Rousseff; entregaram-se ao puro arbítrio, suspendendo mandato parlamentares; associaram-se à operação suja de Janot na homologação do acordo de imunidade judicial para Joesley; cassaram a prerrogativa presidencial de indultar presos.” Ao assumir a missão de legisladores, os ministros do STF, a um só tempo atropelam a Constituição e mandam à sociedade o recado perigoso da insegurança jurídica. 

Restará ao Congresso Nacional, a ser eleito em 2018, através emenda Constitucional, estabelecer a segurança jurídica, em ocorrendo o recuo na jurisprudência criada pelo STF. Ao admitir revisão em “histórica jurisprudência” aprovada há dois anos, o Supremo sinalizará que o poder judiciário, pelo seu órgão máximo, estará garantindo o absurdo: plantar recursos como estratégia para os réus colherem a prescrição da pena. 

Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Foi Deputado Federal (1978-1991)