A paralisação provocada pela pandemia do coronavírus Covid-19 tem mostrado que o universo da música clássica está muito mais antenado às novas tecnologias do que muitos podem supor. Desde meados de março, dezenas de orquestras e músicos mundo afora, incluindo o Brasil, têm realizado programações pela internet, com exibições de gravações de óperas, concertos, lives e até apresentações ao vivo, como as que o maestro e pianista Daniel Barenboim têm feito semanalmente na Sala Pierre Boulez em Berlim – vazia, naturalmente, e com câmeras controladas de forma remota.

No último sábado, porém, o Metropolitan Opera House de Nova York tentou a mais audaciosa façanha até agora: uma gala lírica com mais de quarenta cantores, uma orquestra, um coro, cada músico em sua casa, em um total de quatro horas ininterruptas de música ao vivo, com apenas alguns momentos pré-gravados.

A Met Gala At Home subiu a hashtag simbólica de #TheVoiceMustbeHeard, a voz precisa ser ouvida. E aproveitou o evento para lançar uma campanha de arrecadação: a companhia estima uma perda de US$ 60 milhões até setembro deste ano por conta da paralisação.

A ópera tem algumas especificidades, que tornam uma live dessas proporções algo complicado. Cantores precisam de acompanhamento, o que exige um piano – e, claro, um pianista. As soluções foram das mais variadas. O barítono Ambrogio Maestri tem a sorte de ser vizinho, na Suíça, do maestro Marco Armiliato, que o acompanhou em uma intensa leitura da ária Nemico della patria, da ópera Andrea Chénier, de Giordano. Na Suécia, outro barítono, Peter Mattei, convidou um vizinho que toca acordeon para acompanhá-lo em uma ária de Don Giovanni, de Mozart.

Outros, no melhor estilo karaokê, usaram um acompanhamento pré-gravado (o que foi a voz que continuou cantando após a soprano Sonia Yoncheva terminar a ária de Rusalka, de Dvorák? Playback?). E houve aqueles que surpreenderam ao acompanhar a si próprios, mostrando-se bons pianistas, como o baixo Gunther Groisböck – que acabou sendo surpreendido por uma mudança no cronograma e entrou no ar antes da hora, flagrado terminando uma caneca de cerveja. Outro que foi surpreendido foi o tenor Javier Camarena, que quase foi cortado antes do final de sua ária e precisou avisar que ainda não havia acabado. De sua casa em Connecticut, a soprano Erin Morley tocou e cantou em uma das árias mais difíceis do repertório, da ópera A Filha do Regimento, de Donizetti. O tenor Matthew Polenzani cantou, do piano, Danny Boy, aplaudido ao final pela família toda, atrás das câmeras. No Twitter, não passaram desapercebidos elementos de decoração da casa de alguns dos grandes cantores de ópera da atualidade. Jamie Barton escolheu como fundo sua coleção de livros de Harry Potter. Na Sicília, o tenor Joseph Calleja cantou diante de um enorme aquário. De Riga, na Letônia, Elina Garanca flertou com a estante de livros ao cantar a famosa Habanera da ópera Carmen, de Bizet. A casa de Jonas Kaufmann, em Munique, tem uma sala decorada com poltronas de teatros de ópera. “Essa gente toda estava confinada com seus pianistas?”, perguntou um internauta. “E o bonequinho de si próprio que o baixo Rene Pape tem como decoração em seu apartamento em Dresden? Meu Deus, aquilo é uma cabeça sobre o piano de Anthony Rolf Costanzo?”, questionou um jornalista inglês durante a transmissão – em um tweet que acabou curtido pelo próprio Yannick Nézet-Séguin, diretor musical do Metropolitan que, do Canadá, servia como mestre de cerimônias ao lado do diretor-geral Peter Gelb.

Depois de quatro horas de canto, o encerramento coube à soprano russa Anna Netrebko. Mas ela, assim como seu marido, o tenor Yusif Eyvasov, optou por gravar previamente sua participação, em um pequeno teatro, o que tornou o grande finale um pouco anticlimático.

Logística

Além dela, apenas os trechos com participação da orquestra e do coro foram pré-gravados. De maneira original. Primeiro, Nezét-Séguin regeu sem música as peças e o vídeo, então, foi distribuído aos músicos, que tocaram de suas casas seguindo o maestro. Foi assim, por exemplo, que ouvimos o grande coro da ópera Nabucco, um feito artístico e tecnológico.

Ou o Intermezzo da ópera Cavalleria Rusticana, de Mascagni. Esse foi, por sinal, o momento mais tocante da tarde, inserido em uma sequência que teve início com a Ave Maria, de Verdi, interpretada pela soprano Renée Fleming, e terminou com uma interpretação da ária Ombra mai fu, de Händel, cantada pela mezzo soprano Joyce Di Donato e acompanhada pelas violas da orquestra, em uma homenagem a um colega do grupo morto pelo coronavírus. Ali, foi difícil segurar o choro e não se dar conta do momento que vivemos – e da forma como a arte, por nos fazer questionar o que somos e nos ensinar a entender o que sentimos, precisa mais do que nunca estar ao nosso lado.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.