Por pouco, Xuxa não ganharia como nome de batismo Morgana Sayonara – caçula de uma família gaúcha com cinco filhos, ela ostentaria uma homenagem à fada Morgana não fosse uma promessa feita pelo pai que, ao perceber que a menina não sobreviveria ao parto, garantiu que ela se chamaria Maria da Graça caso escapasse. “Por um milagre, sobrevivi”, conta Xuxa em Memórias, livro em que narra sua história de vida e de carreira, que será lançado na segunda, 21, de forma espetacular: são 100 mil exemplares só na primeira edição.

Na verdade, tudo que rodeia Xuxa parece ser superlativo. Nos anos 1980, por exemplo, conseguiu vender 3,6 milhões de cópias com o disco Xou da Xuxa 4. Suas marias-chiquinhas e sua eterna disposição encantavam as crianças do Brasil e de outros países. Assim, aos 57 anos, ela detém o domínio para, com um estilo simples e comunicativo na escrita, estabelecer um contato com o leitor e traçar um panorama de sua trajetória, em que as vidas pessoal e profissional sempre se cruzaram.

“Não tenho terapeuta, então quem sabe essas próximas linhas não sirvam também como uma terapia?”, diz ela, logo no início do livro, preparando o leitor para temas delicados (como os abusos sexuais que sofreu quando criança) e também amorosos (os namoros com Pelé e Ayrton Senna), sem se esquecer do imenso sucesso na TV e no cinema entre as crianças, que lhe valeu o título de Rainha dos Baixinhos.

Xuxa não se furta de lembrar momentos incômodos, como o de ser abusada sexualmente quando criança. “Tocavam em mim, colocavam o dedo em mim, doía, não sabia distinguir o que sentia, por isso não chorava nem reclamava com ninguém sobre o acontecido”, conta ela, resumindo os casos e confessando seu medo.

Bela e esguia, Xuxa logo se tornou modelo e, se sofria bullying, também conheceu personalidades como Pelé (o namoro não vingou porque o ex-jogador era muito mulherengo) e Senna, a quem dedica muito carinho nas páginas de Memórias. E, mesmo com a carreira encaminhada, aceitou o convite do diretor Mauricio Sherman para, em 1983, comandar o Clube da Criança, programa da extinta TV Manchete. Seu sucesso (apesar do entrevero com os pequenos, motivado pela inexperiência) chamou atenção da Globo, para onde se transferiu em 1986 pelo triplo do salário e conquistou o sucesso pleno: durante mais de seis anos, o Xou da Xuxa liderou a audiência das manhãs.

Curiosamente, uma das profissionais que mais colaboraram com esse êxito, a empresária Marlene Mattos, quase não é citada nas memórias. “Uai… O livro é meu. Por isso”, respondeu Xuxa ao Estadão. Em uma entrevista à revista Caras argentina, em 2018, a apresentadora se queixou de que não tinha ciência de quanto exatamente ganhava com todos seus investimentos, além afirmar que Marlene controlava sua vida amorosa. Sobre suas memórias, Xuxa respondeu por e-mail às seguintes questões.

Você e Rita Lee se admiram e têm ainda uma infeliz coincidência: o fato de terem sido molestadas quando crianças. Como foi revelar isso?

Rita é um ícone e uma artista completa. Eu tenho muitas coisas ainda pra melhorar pra chegar perto das conquistas dela. O fato de sermos da mesma tribo é que nos fez dividir essas experiências com os outros. Acredite, é muito mais comum do que você imagina. Meninos e meninas passam por isso todos os dias e falar sobre esse assunto alerta os responsáveis. Além de fazer com que essas pessoas não se sintam sozinhas ou mesmo culpadas.

Quando você cita Pelé no livro, parece haver um misto balanceado de gratidão e desencanto. Como você avalia hoje os seis anos de namoro?

Falei no livro o que deveria falar para não precisar mais falar sobre isso. Ele fez parte da minha história, mas não faz parte da minha vida. Claro que, se ele me ligar, falarei com ele, que seria o normal, mas não é uma pessoa do meu dia a dia, mesmo porque ele tem a vida dele, eu só fiz parte da sua história.

Você disse que aprendeu muitas coisas com Ayrton Senna. Quais seriam as mais importantes? Você acredita que, se tivesse mais tempo, o relacionamento de vocês poderia vingar?

Escrevi no livro o que eu achava que devia. Não quero falar demais de uma história que não é só minha. Não sei se teria dado certo, meu relacionamento com ele ficou baseado no “SE”: se eu tivesse falado, se tivesse aproveitado mais, se ele não tivesse ido embora cedo… “SE” não é bom pra ninguém, não é certo, saudável, nem mesmo verdadeiro. O que posso te dizer é que Deus me ama muito, pois tenho o Ju (Junno Andrade, seu marido), que respeita minha história com o Beco (apelido de família de Senna) e que me enche de música, poesia. Vivemos, hoje, uma linda história de amor.

Você procura resguardar sua imagem, mas sua privacidade sempre pareceu ser quase inexistente. Como faz para traçar o limite entre vida privada e pública?

Liberdade é uma palavra que eu pouco uso, já que escolhi para mim a vida que tenho. E quer saber? Amo tudo que vem com ela. É um preço alto às vezes, mas nada que não compense mais à frente.

Mauricio Sherman viu em você o sorriso de Doris Day, a sensualidade de Marilyn Monroe e uma pitada de Peter Pan, para então te convidar para comandar um programa com crianças. Mas, na época, você já era uma modelo de prestígio, com a carreira internacional decolando, e com pouca (ou nenhuma) experiência com crianças. O que te fez aceitar um convite que parecia arriscado?

Como disse no livro, fiz contrato de um mês, três meses, seis meses… Até fazer de um ano. Isso porque não sabia o que me esperava. Você usou a palavra “arriscado”, mas vejo como o maior desafio na minha vida e amo desafios. Ele me deu a maior oportunidade e depois veio o Mário Lúcio (Vaz, diretor da Globo), que acreditou no meu potencial, me levando para a Globo. Tenho certeza de que isso tem dedo de Deus.

Seu início na Manchete parece que não foi fácil – ainda há imagens em que você revela uma certa impaciência com a molecada. Como foi o aprendizado?

Eu ainda não tinha as Paquitas como ajudantes de palco. Só depois de quase um ano fui ter. Nunca fui preparada para a televisão. Havia antes Balão Mágico, Sítio, Vila Sésamo… Mas ninguém para me espelhar nesse novo estilo. Fiz um formato que, depois, foi copiado. E, quando se copia, erra-se menos. Me aventurei, criei, inventei, dei minha cara a tapa, tive erros e acertos e todo mundo viu e acompanhou. Hoje, sou meme por isso, mas, na verdade, eu não tinha noção do que estava fazendo e onde estava me metendo.

Chacrinha chegou a dizer que te colocaria no lugar dele no programa quando se fosse. Quem você colocaria no seu lugar?

Ninguém pode substituir o Chacrinha. Tampouco a Hebe. No meu caso, tem muita gente que faz trabalhos parecidos no mundo todo. Não acho que seja difícil encontrar alguém que possa seguir o formato “Xou da Xuxa”, mas ser eu, ser Xuxa, bem, acho que só se Deus permitir. Afinal, foi Ele que me fez, mesmo com muita gente acreditando que quem me “fez” foi uma pessoa ou outra.

De que forma a maternidade te ajudou a lidar com as crianças?

Acho que melhorou meu relacionamento com as mães. Entendi melhor suas reações que, muitas vezes, me incomodavam. Mãe faz tudo por um filho. Pagar mico por um filho, então, era uma coisa normal, que eu sempre via e eu não entendia muito. Hoje, entendo e concordo: é o papel de quem ama.

E de que forma a convivência de tantos anos com crianças te ajudou na criação da Sasha?

Respeito muito seu espaço, suas vontades, a vejo como um ser especial, um anjo que Deus me deu. Assim eu era com os baixinhos e não foi diferente com ela. Apenas exagerei com ela o que já sentia e fazia com eles.

Como seria fazer hoje um programa para crianças?

Não tem mais espaço na televisão para isso, mas eu adoraria me aventurar em programas pequenos, como pílulas que pudessem entrar nesse mundo infantil. Nunca poderia ser comparado com o que já fiz e conquistei. Infelizmente, penso que as pessoas iriam comparar SEMPRE o que já fiz com que estaria fazendo e isso não seria justo.

MEMÓRIAS

Autor: Xuxa Meneghel

Editora: Globo Livros (272 págs., R$ 44,90 papel, R$ 29,90 e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.