Nos limites entre o centro e o sul da África os exércitos e as milícias de oito dos mais pobres países do mundo – República Democrática do Congo (RDC), Ruanda, Burundi, Congo Brazaville, Namíbia, Zimbábue, Uganda e Angola – carregam os fuzis e se preparam para uma longa jornada porque está de volta a maior guerra da África, entre Tutsis e Hutus, na verdade nunca de fato terminada apesar dos dois últimos acordos assinados e de imediato desrespeitados, em 2003 pelos envolvidos na 2ª. Guerra do Congo e dois anos e meio depois pelas chamadas Potências dos Grandes Lagos num Pacto de Não-Agressão. O conflito atual tem como epicentro a província de Kivu Norte, ao leste da RDC (limites com Uganda e Ruanda), onde não mais de 10 mil homens do Congresso Nacional para a Defesa do Povo comandado pelo general renegado tutsi Laurent Nkunda enfrentam as Forças Armadas da RDC (3ª maior nação da África e fronteira dom dez países) que são apoiadas por combatentes Mai-Mai, por hutus remanescentes das Forças Democráticas de Liberação de Ruanda e agora por soldados angolanos. Hutus, agricultores de pele mais escura, baixa estatura e 80% da população de Ruanda e Burundi, odeiam os Tutsis (e são por eles odiados), mais altos, pastores transformados em elite durante o domínio belga. Na primeira rebelião hutu em 1959, militares tutsis aprisionados tinham seus pés cortados a golpes de facão, uma forma simbólica de atingir a igualdade.
Durante cem dias, entre abril e julho de 1994, 800 mil tutsis foram massacrados na mais ampla e radical (muito mais ágil que o holocausto judeu) limpeza étnica já perpetrada e tragicamente ignorada pelos capacetes azuis da ONU, pela Europa e EUA. Outros 4 milhões de ruandeses – numa população de 7,6 milhões – tiveram de refugiar-se nos países vizinhos. Quando os tutsis tomaram o poder com o atual presidente Paulo Kagamé, muitos hutus, temerosos da vingança, fugiram para a RDC, então Zaire, onde as tensões se acumularam até que Laurent Kabila, um negociante tutsi de ouro e de marfim, derrubou o governo de Mobutu Seko (32 anos no poder), mas não evitou a 2ª. guerra do Congo que de 1998 a 2003 envolveu toda a região com um saldo de 3,8 milhões de mortos. Kabila, assassinado em 2001, teve como sucessor o filho Joseph Kabila que conseguiu ser eleito presidente cinco anos mais tarde e pacificar o país à exceção da região leste onde estão os Kivus norte e sul, ricos em minerais.
Desde 1999 o Conselho de Segurança da ONU aprovou nova missão, a MONUC, para manutenção da paz no Congo. Hoje com 17 mil homens em terra, continua tão incapaz quanto a anterior de controlar o conflito. Seu comandante, o general espanhol Vicente Diaz de Villegas, acaba de renunciar ao posto, dias após assumi-lo, denunciando-a como sem foco e destinada ao fracasso. O Secretário-Geral Ban Ki-Moon disse a líderes centro-africanos reunidos em Nairobi que ou conseguem interromper a luta ou enfrentarão uma nova crise regional. No domingo, os países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral limitaram-se a oferecer uma força de paz que, no entanto, só será aceita pelos rebeldes se for neutra e não apoiar o governo de Kinhasa. Só na última semana, 250 mil pessoas foram expulsas da área de conflito, próxima a Goma, capital do Kivu Norte. Em Kigali, o maior dos campos de refugiados internos, a população dobrou chegando a 45 mil pessoas e o responsável da MONUC estabeleceu suas prioridades: segurança, alimentos, abrigo e água. Voluntários dos Médicos Sem Fronteiras lutam para conter uma epidemia de cólera e o kwashiorkor, uma forma grave de desnutrição protéica. O ministro de relações exteriores da França, Bernard Kouchner e seu colega inglês visitaram Kibati para tentar entender porque os massacres nunca cessam na região e a ajuda internacional não chega aos necessitados.
Como toda área fronteiriça em conflito, os Kivus são paraísos do contrabando (80% da cassiterita e do ouro saem ilegalmente) que beneficia a todos os envolvidos, inclusive os chefes militares e principalmente Nkunda, que se declara pastor evangélico, enviado divino (a Bíblia, Gandhi e Martin Luther King estão sempre em suas falas) e acha os massacres inevitáveis, pois “é preciso sofrer para ser livre”. Entre seus mais duros adversários estão os Mai-Mai – termo que nas línguas swahili e lingala significa a água mágica que torna os guerreiros invisíveis às balas -, uns 30 mil nos Kivus onde perseguem tutsis e vendem serviços a quem melhor os pagar. O envio para a zona de conflito de combatentes de Angola, tradicional aliada de Kinhasa, desmentida pelo governo e confirmada pelos jornais de Luanda, é a senha para a participação no lado oposto de países pró-tutsis como Burundi, Ruanda e talvez Uganda, sendo desejada por Nkunda que só assim teria potencial para atravessar o país tentando o que parece impossível: derrubar Kabila-filho. À espreita está o imenso Kivu, o “lago explosivo” (2700 km2 de superfície e população ribeirinha de 2 milhões de pessoas), onde a atividade vulcânica em suas profundezas com importantes reservas de gás metano e dióxido de carbono, ameaça criar um tsunami que faria esquecer de uma vez por todas as diferenças entre os homens à sua volta.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional