Depois de superar os tristes tempos do apartheid e atingir um alto nível de desenvolvimento econômico, a África do Sul não consegue controlar seus políticos e vê crescer o risco de desmonte do sistema cuidadosamente montado por Nelson Mandela para governar o país desde 1994. Na prática tem vigorado um regime de partido único com o CNA, Congresso Nacional Africano (guardadas as diferenças nacionais, é o PT de lá), dominando o Parlamento onde hoje tem 74% dos congressistas. A eleição do líder do CNA é sinônimo de escolha do Presidente da República. O resultado é que a luta interna ganhou cada vez maior intensidade até explodir em dezembro com a derrota de Tabo Mbeki para Jacob Zuma que agora leva ao clímax sua vingança ao obter o impeachment do Presidente, interrompendo um mandato que ainda perduraria até abril do próximo ano. “Aids e corrupção derrubaram Mbeki” alardeou o britânico The Guardian (texto reproduzido pelo Estado de São Paulo), num evidente erro de interpretação, pois embora esses tenham sido problemas reais da administração que agora finda, a decisão de afastar o Presidente surgiu por uma mescla de razões paroquiais e de visão de país, além de que tais carapuças igualmente se adaptam à figura do vencedor da luta titânica pelo poder que abalou o partido governista.
Afora os desvios de conduta que corroíam o Executivo após 14 anos de mando sem oposição, sem dúvida a Aids é a grande tragédia moderna desse país onde um de cada cinco adultos está infectado pelo HIV, a expectativa de vida é de 54 anos (sem a Aids seria de 64 anos), a metade dos jovens de 15 anos deve perder a vida antes dos 50 e a doença vitima mil pessoas por dia. Não obstante, Mbeki sempre afirmou, contra toda evidência científica, que o HIV não causa Aids e sua Ministra da Saúde, Manto Tshabalala-Msimang (a Dra. Beterraba) apoiou uma alimentação saudável ao invés de antiretrovirais que teriam evitado inúmeras mortes desnecessárias. Enquanto isso, a África do Sul dava sustentação econômica e política ao regime de Robert Mugabe no vizinho Zimbábue. Todas seriam justificativas suficientes para a queda de um governante, mas foi um obscuro juiz, Chris Nicholson, que em setembro último deu à oposição interna do CNA um motivo. Ele desconsiderou severas acusações de corrupção contra Zuma e, invertendo o processo, transformou o acusador em acusado ao afirmar que Tabo Mbeki usara a máquina do governo para afastar seu adversário. Em seguida, uma resolução tirada em reunião diretiva do CNA condenou Mbeki que renunciou antes que a obediente Assembléia Nacional o depusesse em plenário. O caso vem de 2004, quando o assessor financeiro de Zuma, o empresário Schabir Shaik, foi condenado a 15 anos de prisão por receber propina na compra de fragatas para a Marinha nacional. O relacionamento entre os dois, segundo o magistrado encarregado do processo, era de “simbiose mutuamente benéfica” ou, como divulgou a mídia, de “corrupção generalizada”. Sob intensa pressão, Mbeki demitiu Zuma do cargo de Vice-Presidente da República, forçando sua renúncia no Congresso. Contudo, Zuma – que desde então adquiriu ódio mortal a Mbeki – não perdeu sua posição no partido graças ao apoio do núcleo operário tradicional e da ala de militantes do Partido Comunista e ao final de 2007, quando respondia a processo por extorsão, lavagem de dinheiro e fraude, viu-se beneficiado pela ausência de provas juridicamente definitivas. Na verdade, a guerra partidária feriu-se entre duas concepções de desenvolvimento: uma, do grupo de Mbeki, voltada para o mercado e base do crescimento econômico atual, outra, dos que sustentam o populista Zuma, ávidos por iniciativas de curto prazo com maior repercussão junto às faixas mais pobres da população.
Quanto à Aids, as perspectivas não são animadoras. Jacob Zuma, um autodidata que só tem o curso primário, é da etnia zulu que aceita a poligamia. Na sua lista estão cinco esposas e oito filhos. Zizabele, a primeira, de lides domésticas; Nompumelelo de 33 anos com quem se casou em janeiro; a ex-ministra de Relações Exteriores Nkosazana Dlamini de quem está divorciado; Kate que em 2001 suicidou-se com overdose de pílulas para dormir e cloroquina, supostamente por depressão e maus tratos. Agora vai casar com a jovem Thobeka (a cuja família já pagou o dote) que, ao ser perguntada sobre quem seria a primeira dama, respondeu que “cruzarei esta ponte quando tornar-me a Sra. Zuma”. Casos extramaritais são comuns. No mais famoso, quando tinha 64 anos em 2006, teria estuprado uma jovem de 31, filha de um colega de partido, HIV positiva e ativista dos movimentos anti-Aids. Defendeu-se dizendo que a relação sexual fora consensual e que tomara uma ducha logo depois para prevenir o contágio. A África do Sul é uma nação desenvolvida que terá de superar pobreza e desigualdades, mas precisa ter mais sorte com seus políticos.


 


Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional, doutor em saúde pública