A estréia de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República coincidiu com a invasão norte-americana no Iraque. Dois anos depois, as duras e freqüentes críticas públicas de Lula à invasão e ao desprezo de Bush pelos princípios multilateralistas elevaram novamente a temperatura diplomática entre os dois países, o que levou, no início de 2004, a então embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak, a agir de forma surpreendente para uma diplomata e a afirmar à AE que Lula passara dos limites nos seus ataques verbais. O presidente petista sentiu logo o conforto que redundava do fato de não ter os olhos dos EUA voltados para a América Latina. Mas o fator Hugo Chávez temperou o momento.


Nos últimos quatro anos, com a elevação dos preços internacionais do petróleo, o desinteresse norte-americano pela América do Sul só não alcançou o governo venezuelano, menos pela Venezuela e mais pelo fato de o país ser presidido por Chávez. E pela lógica pragmática e apropriada ao momento, Washington passou a ver Lula como representante de um modelo para a esquerda democrática, uma espécie de “remédio moderador” dos arroubos antiamericanos e das pretensões armamentistas de Chávez O mérito dos profissionais do Itamaraty foi não deixar que o terceiro-mundismo militante do PT e de parte da assessoria de Lula no Planalto fechasse a porta do diálogo com os EUA. Ainda assim, a relação entre os dois países, que já carecia de profundidade, caiu no trivial e passou a ser pontuada por provocações às vezes pouco diplomáticas – até uma declaração de Lula, feita no calor da campanha eleitoral de 2002, foi respondida.


Para a cerimônia de posse do presidente brasileiro, em 1º de janeiro de 2003, Bush escalou ninguém menos que Robert Zoellick, a maior autoridade dos EUA nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Na campanha eleitoral brasileira, diante da afirmação dos ideólogos do PT de que a Alca era um projeto de “anexação”, Zoellick havia declarado que a resistência brasileira a negociar acordos comerciais levaria o país a ter de vender seus produtos para a Antártida, isto é, para os pingüins. Lula disse que negociaria com o “companheiro Bush” e que não trataria do assunto com o “sub do sub do sub”, que era Zoellick – exatamente quem Bush enviou à posse, em Brasília, para representar o governo dos EUA.


al das Relações Exteriores.


Em meio acooperação Sul-Sul, o presidente Lula sempre tomou cuidado para preservar o espaço de contato direto e franco com o presidente Bush. Escaldado, deixou que Chávez conduzisse o embate sobre a Alca na Cúpula das Américas, em Mar del Plata (Argentina), em 5 de novembro do ano passado. Chávez declarou a morte da Alca. Lula, no dia seguinte, em Brasília, recebeu Bush na Granja do Torto para uma conversa descontraída – alternativa à idéia original de levá-lo a uma pescaria no Pantanal. Com camisas azuis e mangas arregaçadas, ambos caminharam em torno de um lago e aproveitaram a churrascada oferecida. Na verdade, o argumento prático de Lula para Bush levantar o bloqueio à carne brasileira por conta de focos de aftosa. No último encontro entre ambos, na reunião do Grupo dos Oito (G8), em julho passado em São Petersburgo, ficou mais clara a preocupação de Bush com as eleições presidenciais no Brasil, no próximo mês, e com a Venezuela. “Você está bem”, afirmou Bush, olhando o perfil mais esguio de Lula. “É por causa das eleições”, rebateu Lula, acrescentando que a campanha “estava bem encaminhada”.


Traduzindo: Lula disse a Bush que deve vencer. Para um bom entendedor da Casa Branca, meia palavra basta: sem sobressaltos à vista.


Denise Chrispim Marin é jornalista da Agência Estado. A segunda parte do texto foi publicada ontem.