Motivos não faltavam para se apostar no fracasso da novela O Bem-Amado, em sua estreia, em 1973. Afinal, tratava-se da primeira telenovela brasileira a ser produzida em cores – a experiência era totalmente nova para a equipe técnica, que enfrentava dificuldades para se adaptar ao novo equipamento e dominar uma linguagem ainda desconhecida.
A trama também não apontava para a tradicional dualidade entre bandido e mocinho entre os personagens principais: apesar de mau caráter, o prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) logo se tornou uma figura adorável pela sua picardia. E o cangaceiro Zeca Diabo (Lima Duarte), em sua tentativa de se regenerar, transformou-se em uma doce figura aos olhos do público – ao menos, até o último capítulo, quando seu instinto matador se impõe.
Escrita por Dias Gomes, que se inspirou em uma peça de sua autoria (“Odorico, o Bem-Amado e os Mistérios do Amor e da Morte”, de 1962), O Bem-Amado foi um enorme sucesso por fazer uma sátira política (ainda que velada) ao coronelismo da época e à ditadura militar. “E também por apresentar personagens fascinantes”, lembra-se Lima Duarte. Basta comprovar na versão lançada agora em DVD pela Globo Marcas, uma caixa de dez discos que totalizam cerca de 36 horas de novela.
A atração ocupou o horário das 22 horas, dedicado às produções mais adultas, entre 24 de janeiro e 9 de outubro de 1973. Dirigida por Régis Cardoso e com supervisão de Daniel Filho, O Bem-Amado sucedeu O Bofe, extraordinário folhetim de Bráulio Pedroso que, por conta de suas ousadias, provocou estranhamento no público – afinal, poucos aceitavam as estripulias de Ziembinski como uma velha sacudida, muito menos uma novela em que toda a trama se passava em apenas uma noite.
“A produção foi acidentada: doente, Bráulio foi substituído por Lauro César Muniz e eu fui convocado para assumir a direção, na vaga do Daniel Filho”, relembra Lima. A saída de Bráulio, aliás, descontentou o ator José Wilker, que pediu demissão – seu personagem, então, morreu de tanto rir.
“Com o fracasso, achei que seria demitido e fui salvo pelo Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então principal executivo da Globo), que me escalou para a novela do Dias Gomes”, continua Lima Duarte.
Para recuperar a audiência do horário, estreava, assim, uma novela que criticava o Brasil do regime militar ao mostrar o cotidiano de uma fictícia cidade do litoral baiano, Sucupira. Lá, Odorico Paraguaçu é eleito prefeito com a promessa de construir um cemitério, eliminando a vergonha local de enterrar seus mortos na cidade vizinha. “Vote em um homem sério e ganhe um cemitério” era o slogan vitorioso de Odorico, que chamava o projeto de “necrofílico”.
O detalhe é que não acontece mais nenhuma morte no município, obrigando o prefeito a contratar um matador para executar o serviço.
O problema é que Zeca Diabo se transformou em um jagunço regenerado, mais interessado em trabalhar como auxiliar do dentista do que continuar na vida de matador. Do conflito entre ambos, portanto, surge o grande charme da novela.
Autor notável, Dias Gomes usava com habilidade o humor para metaforizar os problemas cotidianos. Assim, um escândalo da época nos EUA, Watergate, inspirou o ‘Sucupiragate’, em que o prefeito conheceu os segredos dos moradores (especialmente seus adversários) por meio de um microfone instalado no confessionário.
O humor ferino, no entanto, logo chamou atenção da censura militar: cinco meses depois de sua estreia, a novela não pôde mais usar as palavras “coronel”, “ódio”, “capitão” e “vingança” – capítulos já gravados tiveram o áudio desses termos apagados.
O governo acreditava que Gomes se referia a um coronel de patente militar, quando, na verdade, ele fazia alusão aos “coronéis” do sertão da Bahia.
Além de Odorico e Zeca Diabo, O Bem-Amado era recheado de grandes personagens, como as irmãs solteironas Doroteia (Ida Gomes), Dulcineia (Dorinha Duval) e Judiceia Cajazeira (Dirce Migliaccio) que, apesar da fama de castas, eram tomadas pelo fogo do desejo na presença do prefeito. E também Dirceu Borboleta, brilhante atuação de Emiliano Queiroz, como o tímido e abobalhado secretário particular de Odorico.

Serviço
O BEM-AMADO
Globo Marcas
R$ 169,90.

 

VOZ FINA ENCANTOU PÚBLICO”, diz ator

Agência Estado — Como surgiu o Zeca Diabo?
Lima Duarte — Foi um trabalho detalhado. Como ele inicialmente só aparecia em poucos capítulos – eu faria apenas uma participação -, decidi incrementar o personagem. Fui à região da Estação da Luz, em São Paulo, onde muitas lavanderias ficavam com ternos não recolhidos pelos migrantes nordestinos e comprei um. Em um churrasco em Sorocaba, descobri o chapéu. Mas o que fez Zeca Diabo cair nas graças do público foi sua primeira aparição na novela: depois de uma bela sequência a cavalo, ele para diante de um bar e, no balcão, pede (afina a voz): “O senhor me dá uma cachacinha, faz favor?” (risos). Como um homem com aquela cara de mau podia ter uma voz daquela? O sucesso foi tão grande que o Dias teve que aumentar meu papel.

Agência Estado — É verdade que você corria o risco de ser demitido antes do início da novela?
Lima Duarte — Sim, a Globo me contratou por conta do sucesso de ‘Beto Rockefeller’, na Tupi, em 1968. Mas ‘O Rebu’, que assumi a direção, foi um enorme fracasso e só não fui demitido por causa do Boni, que me disse: “Você foi contratado como diretor e ator. Já que não deu certo como diretor, vamos tentar como ator” (risos).

Agência Estado — A química entre Paulo Gracindo e você foi essencial para a novela, não?
Lima Duarte —Sim, nós nos tornamos grandes amigos a partir de então. Paulo era um ator genial, muito instintivo e, por isso, conseguia uma coisa rara: colocar improvisações na novela.

Agência Estado —O Dias Gomes deixava?
Lima Duarte —Ele era muito rigoroso com o texto e não admitia. Mas, nas minhas cenas com o Paulo, acabava deixando um pouco.