É verdade que nenhuma coleção de arte ou monumentos de civilizações passadas, de achados arqueológicos, por mais admirável que seja, poderá substituir a descoberta nos lugares onde nasceram. Mas nesses tempos trágicos em que vivemos, um museu pode ser a opção para ver e rever testemunhos de outros povos, outras culturas. São esculturas, objetos de uso pessoal, pedaços de monumentos que parecem animados por espíritos, para enfrentar a eternidade.

O Museu do Louvre guarda no seu acervo uma das maiores coleções do Egito, o Império do Nilo. Em 15 de maio de 1826 foi nomeado o primeiro conservador do departamento egípcio do Louvre. Que era apenas Jean François Champollion, a quem a humanidade deve a tradução e a chave para decifrar os hieróglifos. Foi Champollion que se empenhou com obstinação no convencimento das autoridades para que fossem compradas novas obras, primeiras peças da coleção que hoje ultrapassa 55.000 objetos.

Um tesouro de mil maravilhas, passando de estátuas monumentais a pequenos objetos pessoais, cheios de beleza e de mistério. Algumas peças são emblemáticas, evocando as muitas dimensões fundamentais que marcaram uma civilização, nossa mãe espiritual.

Fotos: Reprodução

No Vale dos Reis, representação do deus Osiris

MISTÉRIO
A grande esfinge, é encarnação do mistério que envolve uma cultura de mais de três mil anos. Lembrando a célebre esfinge que guarda para sempre o ar sagrado de Guizeh ou as esfinges colocadas diante dos templos para afastar os profanos, a esfinge do Louvre foi esculpida durante a IV dinastia, a idade de ouro que viu as construções das pirâmides mais colossais subirem em direção ao céu.

Com o corpo de leão e a cabeça de um faraó, a esfinge não se contenta em apenas fazer perguntas, mas dá respostas: encarna a claridade do amanhecer, que dá vida a tudo o que toca. Um triunfo da luz sobre as trevas. Confirma seu poder e sua capacidade em vender as forças da destrução que, sem cessar, atacam tudo que é criação. (Esfinge, Tanis, Antigo Império, IV dinastia, entre 2620-2500 antes de Cristo).


É pesando o coração que as almas são avaliadas no Além

REI SERPENTE
O longe, o além. Para manter uma harmonia e derrotar o caos, é sempre indispensável um faraó. A estela chamada de rei serpente é simples, mas impressionante. Um soberbo falcão pousa sobre um retângulo, no interior do que se encontra uma grande cobra, acima da fachada de um palácio. O falcão é a encarnação do deus Horus, o distante, o além, cujos olhos são a lua e o sol e as asas têm a dimensão do cosmos. Independentemente do homem e do nome reinante, cada faraó é um Horus, e todas as dinastias seguiram o mesmo modelo.

Um falcão, uma serpente, um palácio: evocam os primeiros faraós encarregados de unir em suas pessoas o símbolo das duas terras, o Alto e o Baixo Egito, e os dois irmãos inimigos, Horus e Seth, que combatem sem cessar para dominar o universo. Com os símbolos datando da primeira dinastia grandiosa, na sua simplicidade mostram a maturidade de uma civilização que se afirma desde sua origem. (A estela do Rei Serpente foi encontrada em Abydos, é da 1ª. dinastia, entre 3100-2900 antes de Cristo).


Representação da Barca do Sol, no Vale dos Trabalhadores

AMON PROTETOR
Amon, o escondido, cuja natureza é inacessível aos homens, domina de sua altura Tutankhamon, que ficou célebre no mundo quando Howard Carter descobriu sua tumba intacta, em 1922. A cabeça do rei foi quebrada, mas o essencial é a humildade de seu tamanho pequeno em relação a Amon, que ostenta duas altas plumas na cabeça, evocando o sopro de vida que ele oferece a todos os seres. Amon é o guia divino. É ele quem orienta o faraó pelos caminhos da justiça e ensina como manejar o timão do barco do Estado, que o rei deve levar a bom porto. Toutankhamon, no grupo estatuário da XVIII dinastia, tem uma vestimenta ritual, constelada de estrelas, símbolo de sua função de mediador entre o céu e a terra. (Amon protegendo Tutankhamon – Karnak – Novo Império, entre 1336-1327 antes de Cristo)


Representação do deus Anubis, inclinado sobre uma múmia

SOBERANA DO OCIDENTE
É a comunhão com o divino que emana do faraó. O que está muito bem ilustrado no baixo relevo retirado da tumba de Séthi I, no Vale dos Reis. Champollion, que não dispunha de aparelho fotográfico, resolveu cortar o baixo relevo mostrando o encontro do rei e da deusa Hathor, para levar para a Europa e convencer a todos sobre o esplendor da arte faraônica. O método destrutivo não tirou a mérito do egiptólogo: ninguém resiste ao charme de Hathor, deusa do amor e da alegria, que fazia dançar as estrelas.

As cores quentes foram conservadas, a delicadeza do desenho e a elegância das formas continuam a maravilhar o mundo. Coroada com um sol vermelho colocado entre os chifres da vaca celeste, Hathor doa ao faraó o colar mágico – menat – que dá a seu protegido uma juventude eterna. Soberana do Ocidente onde a morte aparente é transformada em vida ressuscitada, Hathor provoca em Séthi um amor sobrenatural, sem o qual seu reino não teria nenhum sentido. Através de Hathor que o Egito ganha uma suavidade de vida rica e feliz, evocando o Egito onde a mulher é igual ao homem. (Relevo de S;ethi I e de Hathor, Vale dos Reis, Novo Império, XIX dinastia, entre 1294 e 1186 antes de Cristo).


A feluca desliza tranquila nas águas próximas ao mausoléu de Aga Khan

A DIVINA
A Divina Adoradora Karomama é uma pequena obra de arte, ainda com vestígios de folhas de ouro que recobriam as pregas de sua vestimenta, ela mesma envelopada por duas grandes asas. Mulher de ouro, mulher alada, Karomama era a esposa terrestre do deus Amon. Verdadeira soberana de Tebas, reinava sobre a grande cidade sagrada e fazia o papel de uma especial sacerdotisa. Graças a Karomama, os terríveis poderes maléficos no universo eram apaziguados e transformados em luz. (A estátua de Karomama, a Divina adoradora de Amon é de Tebas, XXII dinastia, entre 945 e 715 antes de Cristo.)


Sarcófago em ouro de Tutankhamon, principal atração no Museu do Cairo

O PODER DOS ESCRITORES
Escriba trabalhando, da V dinastia, com seus olhos de cristal de rocha contemplando o visível e o invisível, lembra que os hieróglifos são palavras de Deus, reveladas aos homens por Thot, o deus do conhecimento e padroeiro dos escribas. O Egito foi uma civilização da escrita: o papiro, a madeira e a pedra foram os principais suportes dos hieróglifos. Graças ao trabalho dos escribas, hoje existe uma documentação considerável de uma civilização iluminada. Através dos escribas do passado, nasceu a admiração dos egípcios pelos escritores, donos da magia que continua a encantar leitores. (Escriba sentado, Saqqara, Antigo Império, V dinastia, entre 2500 e 2350 antes de Cristo).


Escriba era a mais alta das profissões, sempre junto faraó por causa de sua sabedoria e conhecimentos

ESPÍRITO ILUMINADO
A estela C 14, da IX dinastia, é proveniente de Abydos, cidade santa de Osiris. É uma pequena obra excepcional, composta de uma série de linhas horizontais de hieróglifos e da representação do artesão Irtysen e de sua esposa. Oferendas são apresentadas por parentes e amigos, e o casal está sentado à mesa coberta de alimentos em abundância, para a eternidade.

Irtysen revela que um mestre artesão deve conhecer o segredo das palavras divinas, os rituais, as fórmulas mágicas e as proporções, além de ser iniciado a todos os segredos da arte, da representação do movimento e da natureza dos materiais preciosos. Seus trabalhos não eram fruto do azar, mas criações nascidas de uma ciência sagrada. Eram aqueles que fazem viver, unindo o espírito à mão. Almas de luzes, escultores e pintores produziam obras de arte capazes de derrubar fronteiras do tempo e de alargar o coração. (Estela de Irtysen – Abydos – Império do Meio, XI dinastia, Montouhotep II, cerca de 2030 antes de Cristo).


Principe Amon-her-Khopechef e o deus Arietes, pintura que guarda o mesmo brilho e intensidade dos primeiros tempos

RESSURREIÇÃO
O sarcófago de Ramsès III, que veio de sua enorme tumba no Vale dos Reis, é o sentido da eternidade que nos é apresentado, tanto pelo poder e beleza do granito rosa esculpido com perfeição, como pela presença das deusas Isis e Nephtys, ajoelhadas sobre o signo hieróglifo do ouro. Seths assassinou seu irmão Osiris e espalhou partes de seu corpo. Com a ajuda da irmãmNephtys, Isis conseguiu reencontrar e reconstituir o cadáver de seu esposo.

Acontece então o milagre: ela dá novamente a vida ao corpo. Do renascimento, nutrido pelo conhecimento e muito amor, nasceu Horus, cuja missão consiste em fazer valer a justiça e a verdade. A partir de então, cada ser reconhecido pelo tribunal divino do mundo do além, será ressuscitado na casa do ouro onde está depositado o sarcófago mestre da vida. Criando um corpo renascido, a múmia faz brilhar um espírito luminoso e brilhante como o ouro, com Isis e Nephtys produzindo uma alquimia espiritual.


Ramsés III com a deusa Isis e o filho do faraó

ILUMINAÇÃO
A pequena estela de madeira Dame Tapéret, é um conjunto incrível de cores que colocam em destaque a dimensão espiritual da mulher na civilização egípcia. Tapéret se encontra com o deus da luz, Ra-Horskhty, representado por um homem com cabeça de falcão. Do sol vermelho que ele tem na cabeça saem os raios que tocam Tapéret, para transmitir a ela um conhecimento solar. Não há perigo para ela, que não teme nenhuma violência, porque os raios são transformados em flores. (Estela de Tapéret, terceiro período intermediário, XXII dinastia, entre 945 e 725 antes de Cristo).


Perante a grandiosidade de uma civilização o homem moderno volta à sua insignificância

ASTROLOGIA E ASTRONOMIA
Uma das obras célebres do acervo egípcio do Louvre em Paris é o Zodiaco de Dendera, templo do Alto Egípcio dedicado a Hathor. O teto astronômico e astrológico se encontrava em uma das capelas consagradas ao processo da ressurreição. Signos do zodíaco e figuras celestes fazem a evocação do saber dos sacerdotes do Egito que estava em vias de acabar.

Abrigado das convulsões do mundo exterior durante décadas, os últimos sábios da terra dos faraós cobriram com textos e cenas simbólicas as paredes dos templos para dar uma idéia do mundo e da vida que eles já sabiam condenados. Olhando o zodíaco, os últimos alentos criativos de uma imensa civilização, é difícil não pensar nos textos do Antigo Império, que afirmam: o faraó é uma parte viva, que brilha eternamente no céu, sob a forma de uma estrela. (Zodiaco do Templo de Dendera, época grego romana, 1 século antes de Cristo).

Um dia passado no setor egípcio do Louvre de Paris, vale por muitas vidas. Aproveite, na sua próxima viagem.