Na madrugada do dia 1º de janeiro de 1911, um telegrama informava ao então ministro da Guerra, Dantas Barreto, o destino de marinheiros presos a bordo do navio Satélite durante a Revolta da Chibata: para o bem da pátria e da humanidade e salvação das nossas vidas, às 2 horas mandei fuzilar os ex-marinheiros…, e concluía com cordeaes saudações. A mensagem original, escrita à mão e entregue ao telegrafista horas depois da execução, é um dos milhares documentos históricos restaurados e digitalizados pelo Arquivo Público Municipal de Curitiba à disposição da comunidade.
São atas, decretos, contratos, fotografias, plantas arquitetônicas, revistas e outros inúmeros registros públicos que, no formato eletrônico, passam a ser localizados e disponibilizados mais rapidamente a comunidade. Além das facilidades de acesso, a digitalização reduz a necessidade de manipulação dos originais, o que contribui para a conservação dos documentos, explica o diretor do Arquivo Público Municipal, Rubens Zampieri.
De acordo com os últimos levantamentos, cerca de 10% das mais de 126 milhões de páginas de registros em papel ou microfilmados, que datam a partir dos anos 1880, já estão digitalizados. Somente na sessão de documentos históricos raros, o volume já supera 1 milhão de páginas. Basta ao interessado protocolar sua solicitação informando os documentos ou o assunto de interesse para que, uma vez localizados os arquivos, eles estejam acessíveis por meio de um link eletrônico, esclarece.

Os documentos digitalizados são reconhecidos legalmente desde 2012 e a área encarregada dessa atividade no Arquivo Público de Curitiba está aparelhada para a conversão de qualquer suporte, ou seja, a partir de documentos em papel, microfilme, negativos fotográficos, fotos, VHF, entre outros.

Recentemente, quatro novos scanners foram instalados, além de mesas digitalizadoras para diferentes tamanhos de documentos. Temos know how e equipamentos que permitem a digitalização de até 120 mil páginas de documentos por dia observa Fábio Adriano Pessine, responsável pela área de digitalização de documentos do Arquivo Público.

Raridades

À carta informando sobre o destino dos marinheiros somam-se inúmeras outras verdadeiras relíquias históricas da cidade e seus cidadãos, de eventos ocorridos dentro e fora dos seus limites geográficos. Por interesse acadêmico, profissional ou mera curiosidade, por exemplo, é possível consultar as plantas arquitetônicas de 1924 do Castelinho do Batel; do Palácio Avenida, de 1926; ou mesmo a autorização para construção da primeira archibancada do campo do Coritiba Foot Ball Club, em 1931.

Da mesma forma, constam do acervo o Decreto nº 1, assinado pelo então prefeito Moreira Garcez em 8 de março de 1920, escrito a bico de pena, abrindo o crédito de 300 contos de réis para o pagamento de funcionários. Caso o interesse seja pelo período pré-abolicionista, é possível consultar, por exemplo, o primeiro dos os quatro livros de registros de sepultamentos do Cemitério Municipal São Francisco de Paula de 1883 a 1923, onde constam os sepultamentos de escravos, suas idades, origem, causa das mortes e também os nomes dos seus senhores.

A recuperação desses quatro livros exigiu mais de dois anos de paciente dedicação, bem como adoção de técnicas especiais de restauro e conservação, explica Zampieri, ressaltando a importância de recuperação do acerto e do seu papel como fonte de pesquisa e consulta. Analisando esses documentos é possível verificar, por exemplo, quais doenças eram as mais comuns, quais eram as técnicas usadas na construção civil, os estilos dos projetos arquitetônicos ou como evoluíam as tarifas públicas, diz.

As principais demandas junto ao Arquivo são de estudantes em trabalho de doutorado, mestrado ou conclusão de curso; de cidadãos que querem recuperar a história da família; de servidores públicos, advogados e outros profissionais em busca de documentos para juntar a processos administrativos ou judiciais. A prioridade da digitalização segue o critério de demanda, ou seja, o documento é digitalizado na medida em que é solicitado.

126 milhões de páginas

Os documentos estão guardados em 3 mil metros quadrados em dois barracões localizados na CIC. Alguns poucos passos entre as fileiras formadas por 1,9 mil estantes e já é possível perceber a esmagadora presença das mais de 69 mil caixas que acomodam cerca de ‘126 milhões de páginas. Na ala dos microfilmados, são mais de 14 mil rolos, cada um totalizando mais de 3,3 mil fotogramas, ou 46 milhões de páginas.

Se colocados um ao lado do outro, ou empilhados, alcançariam quase 10 quilômetros de altura/comprimento. Para se ter uma ideia, estima-se que hoje em todos os órgãos da administração pública, o volume de documentos por esta medida chegaria a 40 quilômetros lineares, com crescimento anual calculado em 7%.

O arquivamento de documentos públicos é uma exigência legal e para cada tipo há prazo de guarda definido. De acordo com as normas, são três categorias: arquivo geral/corrente – documentos que precisam ser guardados entre dois e 20 anos; intermediário, entre 20 e 75 anos; e permanente. Nesta última categoria estão os documentos de valor histórico, que devem ser preservados indefinidamente e o acesso é público e irrestrito. Documentos que já cumpriram o prazo de guarda e não possuem valor histórico são eliminados – na última triagem, há dois anos, foram suprimidas 20 toneladas de documentos.

Documentos no freezer

O arquivamento de documentos não se restringe ao recebimento e guarda de papéis. Longe disso. O processo compreende várias etapas e técnicas próprias. É preciso selecionar (filtrar), organizar, tratar e recuperar os documentos. Acondicionar, catalogar e arquivar. Depois vem a gestão, que envolve não só controle mas também a conservação, resume a gerente do Arquivo Público de Curitiba, Rose Mary Rodrigues.

As informações produzidas, recebidas e acumuladas pelos órgãos da administração pública e conservadas no Arquivo, são essenciais para a tomada de decisões, para a comprovação de direitos individuais e coletivos e para a o registro da memória coletiva. Assim, Rose lembra que os cuidados com estes documentos devem começar muito antes, quando eles ainda estão sendo produzidos nas repartições.

Quando um servidor grampeia um conjunto de documentos, ele deve ter consciência de que aqueles papéis são parte da história da sua cidade e devem ser cuidados. Derrubar café, água ou amassar os documentos significa comprometer futuras consultas, observa.

Para que os documentos se mantenham em condições de uso, bem conservados, o Arquivo Público da Prefeitura de Curitiba utiliza até mesmo um freezer. Trata-se de uma técnica de congelamento de papéis por um prazo de até 21 dias, com o objetivo de eliminar o chamado piolho de livro, que comem as folhas. Esta e outras técnicas são adotadas pela Gerência de Preservação e Conservação de documentos, cujo objetivo é justamente recuperar e estabilizar a degradação de documentos.

Sachês aromáticos

Ao andar entre as quase duas centenas de prateleiras do Arquivo é possível observar dezenas de pequenos saches pendurados em intervalos regulares. Feitos de algodão, eles contêm pequenas porções de cravo da índia, citronela, cânfora, óleos essenciais de eucalipto, menta, entre outras especiarias, e são parte do trabalho de conservação dos documentos.

A função dos sachês é evitar a entrada e espantar insetos do ambiente, explica a técnica em preservação Noeli Regina Bello, uma das mais experientes restauradoras de documentos do Arquivo. Ao lado dela e de Cliceia Pereira, também restauradora, encontram-se algumas caixas de papelão de perfil baixo. Dentro, verdadeiros quebra-cabeças com centenas de pequenos – alguns minúsculos – fragmentos de papel amarelados pelo tempo.

Parte do nosso trabalho é justamente montar estes quebra-cabeças, recompor o documento e permitir que seu conteúdo seja revelado, explica Noeli. A idade do documento, o tipo de papel e a tinta utilizada, bem como a forma e o ambiente onde foi armazenado são avaliados no momento da restauração, que é feito de forma totalmente artesanal.

Conforme o grau de acidez do papel, ele se torna mais ou menos quebradiço e nossa tarefa inclui o refibramento e sua reconstituição, explica. A técnica inclui o uso de uma pasta feita exatamente de fibras de papel – cola de metilcelulose, e também o chamado papel japonês, que serve de base para o restauro por sua resistência e leveza. A técnica permite unir os fragmentos e trazer à luz a aparência original. É uma atividade que exige paciência, dedicação e amor ao trabalho de restauração completa.

Serviço

Os interessados em efetuar pesquisa/consulta no acervo Permanente do Departamento de Arquivo Público devem solicitar agendamento pelo e-mail [email protected]