PAULA REVERBEL SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O cientista político argentino Carlos Escudé pediu nesta quinta-feira (4) ao Instituto Rio Branco que altere o gabarito de pergunta sobre doutrina que ele criou. O pedido foi feito na forma de uma carta aberta ao instituto, que incluiu, na primeira fase do concurso de admissão à carreira diplomática, uma questão sobre a teoria do realismo periférico. Trata-se de uma corrente das relações internacionais na América Latina que foi muito influente nos anos 1990.

Escudé, que contesta o gabarito oficial desde quarta-feira, foi procurado pelo advogado Felipe Monteiro, que presta o concurso há mais de três anos e que apresentou recurso sobre a questão. “Qualquer aumento de pontuação será fundamental para mim”, explicou Monteiro à reportagem. “A minha pontuação está bem próxima da possível nota de corte”, acrescentou. Na carta, Escudé rebate a afirmação, apontada como correta pelo gabarito, de que a doutrina do realismo periférico se insurge contra princípios como patriotismo, interesse nacional, segurança e sobrevivência nacional.

“A Carta de Escudé comprova que a própria banca se embaraça quando elabora as questões do certame. Na realidade, nós, candidatos, pleiteamos um edital mais objetivo e justo, condizente com as prioridades da atual agenda da política externa brasileira”, defendeu Monteiro. O prazo para a apresentação de recursos contra o gabarito vai até esta quinta, às 18h, e a análise ficará a cargo das bancas examinadoras do Instituto Rio Branco.

De acordo com o edital, a questão pode ser anulada ou o gabarito, alterado. A publicação do resultado da prova e do gabarito definitivo no Diário Oficial da União está prevista para o final de agosto. Leia a íntegra da carta de Carlos Escudé:

“_Prezados Senhores,_ Tenho grande respeito e até admiração pelo Instituto Rio Branco, que eu considero um modelo entre as academias diplomáticas no mundo, e por isso me chamou muita atenção que, certamente por descuido, tenham avaliado de forma equivocada uma pergunta sobre a minha teoria e doutrina de Realismo Periférico (RP), no exame de admissão tomado no último domingo, 31 de Julho. Os candidatos deviam dizer se a seguinte declaração é verdadeira ou falsa: ‘O RP pode ser classificado como uma teoria desconstrutivista, na medida em que se insurge contra postulados por ele considerados deletérios, contraproducentes e (ou) ideológicos, tais como patriotismo, interesse nacional, segurança e sobrevivência nacional, entre outras.’ A resposta oficial dos examinadores é que esta afirmação é verdadeira, quando na verdade é absolutamente falso que o RP renegue o patriotismo, o interesse nacional, a segurança e a sobrevivência nacional. Isto pode ser afirmado apenas a partir de um preconceito ideológico profundo contra o RP, já que uma doutrina que rechace esses valores seria indecente e insustentável. O que acontece é que esses ‘princípios’ não têm o mesmo significado para todos. Do ponto de vista do RP, na política externa a própria definição de ‘interesse nacional’ de um país periférico corre através da adoção de políticas que melhorem sua inserção internacional, gerando oportunidades econômicas e financeiras que favoreçam o bem-estar do cidadão. Para o RP, o bem-estar do povo é a essência do ‘interesse nacional’. Portanto, no caso de um Estado periférico, ser patriótico implica favorecer este tipo de política, e rejeitar confrontos desnecessários com as grandes potências, que geram sanções ou perdas que são contraproducentes para o bem-estar do povo. Não obstante, o RP só se opõe aos confrontos ‘desnecessários’. Também há confrontos inevitáveis, em que não se pode abdicar sob pena de prejudicar a cidadania. Por isso, a capacidade limitada de confrontação de um Estado periférico deve ser reservado a momentos críticos. Isso é consistente com o ‘interesse nacional’ e lutar pela vida deste princípio é ‘patriótico’. Por outro lado, a defesa desta versão de ‘interesse nacional’ é indispensável para a ‘segurança e sobrevivência nacional.’ Portanto, também não se pode dizer que o RP considere estes valores deletérios, muito pelo contrário. Há aqueles que não concordam com esses conceitos, e creem (por exemplo) que a Guerra das Malvinas foi um feito patriótico argentino. Esta é uma posição que deve ser respeitada, embora represente o oposto do RP. Para o RP, essa guerra não foi patriótica pois era claro, desde o início, que a Argentina ia perder, e que os interesses do povo argentino seriam danificados. Mas seria absurdo se eu afirmasse que a doutrina dos apoiadores da ‘gesta de Malvinas’ da Argentina despreza o ‘patriotismo’! Simplesmente temos conceitos diferentes do que é ‘patriotismo’. Outro exemplo claro é a bomba atômica de um país periférico. A partir do nacionalismo tradicional, certamente se pode dizer que é ‘patriótico’ que um norte-coreano apoie um programa nuclear em seu Estado. Em vez disso, porque a cidadania norte-coreana é muito mais pobre devido às sanções que sofre devido ao seu programa nuclear, com base no RP diríamos que este programa é contrário ao interesse da cidadania, e opor-se ao mesmo seria o único ‘patriotismo’ possível. Um exame em que estigmatiza o RP, afirmando que ele considera deletérios valores tão importantes como o patriotismo, é apenas propaganda política contrária ao RP. É profundamente anti-intelectual. E é absolutamente indigno do grande Instituto Rio Branco, que deve manter a sua qualidade de excelência para o benefício de todos os sul-americanos. Saúdo-vos com respeito distinto. Carlos Escudé”