Pagu
Patrícia Galvão, a Pagu (Acervo da família)

“Fiz tudo o que pude em matéria de sacrifícios para te salvar, expondo tudo o que de mais nobre possuía, enfim a minha própria vida! Fi-lo sensibilizada pelo teu falso amor, pois bem sabias que eu não te amava!”. Trechos de uma carta que poderia ter como autor e destinatário diversas pessoas, tendo em vista que o sentimento exposto nas linhas é universal.

O escrito, porém, envolve duas figuras célebres, que se casaram, aliás, de modo inusitado, em um cemitério, no dia 5 de janeiro de 1930, na capital paulista: o poeta e dramaturgo Oswald de Andrade e a também poeta, jornalista, desenhista, escritora e militante Patrícia Rehder Galvão, mais conhecida como Pagu. A carta em questão é um dos manuscritos inéditos que se encontra ao folhear o livro “Os Cadernos de Pagu”, da editora Nocelli, que será lançado neste sábado (11), na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos.

A autora da obra sobre a poeta é a criadora e diretora do Centro de Estudos Pagu Unisanta, em Santos, Lúcia Teixeira. Fundado em 2005, o centro conta com cerca de 3 mil arquivos originais e digitalizados.

Há anos Lúcia garimpa materiais sobre a poeta paulista, nascida em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista, e que, aos 15 anos, já contribuía com o Brás Jornal, sob o pseudônimo Patsy. Nesta idade, Pagu teve o caminho cruzado pelo fotógrafo e poeta Mário de Andrade, um dos fundadores do modernismo no Brasil.

“Esse livro é um complemento para pesquisadores, porque é o corpo dela que está ali”, afirma Lúcia.

Aos 18, Pagu já aumenta o círculo de amigos, referências e amores, quando começa a frequentar encontros de Oswald e da pintora Tarsila do Amaral, então um casal, até que Pagu e o poeta se apaixonam um pelo outro. É também em 1928 que o poeta modernista Raul Bopp sugere o uso do apelido Pagu, por achar que o sobrenome de Patrícia fosse Goulart. Um ano depois, já se torna uma das colaboradoras da Revista da Antropofagia, que publicou um desenho seu e começa a alimentar um diário, com Oswald de Andrade, que recebe o título de Romance da Época Anarquista ou Livro das Horas de Pagu que São Minhas.

Tudo na vida de Pagu parecia acontecer de modo acelerado, cedo. Conforme retrata a obra de Lúcia Teixeira, no ano em que completa 21 anos, ela passa a integrar o Partido Comunista Brasileiro, que, mais tarde, vai pressioná-la a demonstrar seu comprometimento com a militância exigindo que ela se transforme também em uma trabalhadora do chão de fábrica e se ocupe em funções como a de tecelã. O partido também a criticava constantemente pela origem dela e a de Oswald, considerando-os parte da burguesia e, por conseguinte, parte do problema que o partido combate. Por isso, Pagu também chega a viver em uma vila operária no Rio de Janeiro.

Feminismo

Conforme ressalta Lúcia Teixeira, é simples entender por que Pagu virou uma referência feminista. Ela pode ser considerada uma mulher revolucionária pelo engajamento que sustentou, o que implicou também a contestação das restrições colocadas pelo partido do qual fazia parte. “O partido não permitia atividade intelectual”, diz a biógrafa.

“Ela entrou na teatralidade [do processo de Oswald, de transformá-la em musa]. Aí, nos cadernos, mostra essa busca de uma produção intelectual. No primeiro, de 1929, em que deixava uns recados para o Oswald e Rudá [filho dos dois], esse diálogo do cotidiano aparece, mas também a força da escrita”, complementa.

Ainda em 1931, Pagu publica a seção A Mulher do Povo no jornal O Homem do Povo, que editou com o então companheiro, de quem depois se separa, por conta da desilusão amorosa que tem, diante das sucessivas traições conjugais. Conforme lembra Lúcia Teixeira, no livro, a polícia chegou a proibir o jornal de circular e Pagu também cria, no jornal censurado, uma história em quadrinhos.

Lúcia relata que, certa vez, Pagu foi a um congresso de poesia e se autoentrevistou. “Além dessa busca da cultura, há a jornalista, que busca documentar, de alguma forma, aquele momento, talvez sem nem saber a dimensão que poderia tomar, mas sempre buscando pessoas e documentos inovadores”, pondera.

A partir de agosto de 1931, Pagu começa a virar com dor o calendário de dias. Ela é presa, no dia 23, em Santos, durante um comício organizado em homenagem ao sapateiro Ferdinando Nicola Sacco e ao vendedor ambulante Bartolomeo Vanzetti, anarquistas italianos presos e condenados à morte injustamente, após serem apontados como assaltantes de uma fábrica de sapatos de Massachusetts, nos Estados Unidos, onde viviam. Um episódio que marcou definitivamente a poeta foi a morte de um trabalhador negro em seus braços.

Lúcia Teixeira nos permite reparar nas mudanças nas fases da vida de Pagu e também em outros detalhes, como o formato das letras nos manuscritos. Depois de ser presa, ela inicia a escrita do romance proletário Parque Industrial, publicado em 1933, quando passa a viajar por países como Japão, Rússia e China, enquanto repórter, e assinando com o pseudônimo Mara Lobo. Pagu também fez uma peça teatral baseada em seu próprio livro.

O interesse de Pagu pelo teatro era voltado em específico para o Teatro do Absurdo. O encantamento com a vertente fez com que Pagu traduzisse peças de expoentes como Fernando Arrabal, de quem empresta uma obra para dirigi-la, em 1958.

“Ela faz rascunhos da peça Parque Industrial, inclusive desenhando o cenário, alguns figurinos. Aí, a gente vê a mudança na escrita, com uns riscos, dessa fase agitada”, salienta Lúcia, observando, ainda, que há um texto em que Pagu faz uma autocrítica.