capa umbanda franklin
Cigano e seu bode de estimação, chamado Exu: episódios de intolerância se intensificaram ao ponto do morador ter de fazer uma faixa para protestar contra a situação (Foto: Franklin de Freitas)

Uma casa na pacata rua Santa Clara, no bairro Ahú, virou motivo de discórdia entre vizinhos e pessoas que passam pela região. Tudo porque o proprietário do imóvel de número 483 “ousou” usar a frente de sua própria casa para expressar a sua religiosidade. Ele é da umbanda e cultua a entidade espiritual Exu Tranca Rua. E o que ele tem passado evidencia como a intolerância religiosa ainda reverbera na sociedade curitibana.

Cigano Moellmann, 38, mora no imóvel há cerca de quatro anos. Nos primeiros momentos, não teve problemas com a vizinhança ou outras pessoas. A situação, no entanto, começou a mudar no ano passado, quando ele resolveu cultuar a sua própria religião e colocar uma entidade – uma imagem pequena (com aproximadamente 10 centímetros) do Tranca Rua – na frente de sua residência. “A partir disso começou o inferno na frente da minha casa”, relata ele.

Primeiro, roubaram a imagem que ele havia colocado no local. Depois, uma nova imagem foi providenciada e acabou sendo quebrada. Foi quando veio uma imagem maior, que segue exposta na frente da residência e agora fica protegida por uma grade colocada junto a uma árvore. Além do Tranca Rua, atualmente também há imagens de Belzebu e da Pomba Gira que ficam expostas em frente ao imóvel.

“Começaram a quebrar garrava aqui na frente de casa. Os caras passavam na frente e jogavam aqui no portão. A primeira vez que aconteceu isso eu fiquei bem mal, pensei ‘o que eu fiz de errado?’ Conversei com advogados na época, até com alguns pais e mães de santo, para saber se estava certo ou não. E não, não tinha nada errado. Mas as pessoas seguiam quebrando garrafas aqui na frente, deixavam cartas com ameaças, deixavam bíblias, recados… E quando comecei a ver, os evangélicos estavam vindo aqui pra frente da minha casa para rezar, dizer que eu estava repreendido, que aquilo era coisa do capeta, do diabo”, conta Moellmann.

A chegada de um bode e a intensificação do preconceito

As coisas (e a intolerância) escalonaram mesmo, no entanto, depois que Moellmann (que é pecuarista) colocou na frente de sua casa um bode de estimação.

“Quando o bode chegou aqui, era denúncia de segunda a sexta. Veio fiscalização da Prefeitura, Polícia Militar, Polícia Civil… Não tem um órgão da Prefeitura que não conheça a minha casa. Denunciavam que o bode estava sendo maltratado, que não tinha água, não tinha comida, que ficava amarrado… O animal tem comida à vontade, água à vontade, tem espaço. É um animal doméstico, manso, que só usa uma cordinha para eu poder manusear ele. O bicho toma banho, cara! Eu tenho vídeo dando banho nele”, explica o umbandista, citando que chegou a brincar com os fiscalizadores que começaria a esperar eles com o café pronto. “A fiscalização sempre veio, mas nunca teve nada de errado”, ressalta.

Num dia em que Cigano não estava em casa, no entanto, a Vigilância Sanitária e um carro de polícia foram mais uma vez até o imóvel. Novamente, tinham denunciado ele por causa do bode às equipes de fiscalização. Um segurança da rua foi quem viu as autoridades no local e conversou com eles, explicando que o animal era, sim, bem alimentado e bem tratado.

O episódio foi a gota d’água para o umbandista, que resolveu então se posicionar. No começo de maio, então, ele mandou fazer uma faixa, até hoje instalada na frente de sua casa, com os seguintes dizeres: “Continuem denunciado, está divertido ver como um bode preto aterroriza a vida de quem deve. Que Exu dê o caminho merecido a você! Laroye Exu!”

Intolerância para todas as idades…

Depois de os ataques começarem, Cigano instalou câmeras na frente da residência. Com isso, começou a gravar as ofensas proferidas e os atentados contra sua casa. Foi quando constatou, espantado, que o preconceito religioso afetava pessoas de todas as idades. “São pessoas mais velhas, mas também outras mais jovens que passam aqui e fazem ‘elogios’. E eu fico admirado, porque é só pesquisar sobre umbanda. As pessoas veem a imagem ali e deduzem que é o Tranca Rua. Cara, pesquise. Tudo associam como se eu estivesse fazendo alguma coisa ruim.”

Ainda segundo ele, grande parte das pessoas, ao ver a imagem do Tranca Rua, associa a algo como se fosse um diabo naquela árvore, especialmente quando veem que é colocada cachaça, charuto e cigarros para a entidade. “Dizem assim ‘se fosse coisa boa, não tava bebendo cachaça’. Não sabem de nada! Sabe o éter que vai no marafo, que a gente chama de cachaça? Aquilo é uma energia que funciona para aquelas entidades, para trabalho. O charuto, o cigarro, também tem uma função. É tudo pro trabalho que ele está fazendo. Por se tratar do Tranca Rua, o povo associa como se fosse alguém que vai trancar tudo, fazer algo ruim. Mas se for pesquisar, em vida ele foi padre, tinha o dom da cura, da reza”, esclarece o umbandista sobre a entidade que cultua.

… E alguns episódios que mostram como a resiliência vale a pena

Apesar das adversidades, Cigano promete não arredar o pé. Ele quer que sua resiliência sirva de exemplo e, quem sabe, até de inspiração para outros umbandistas que passam por situações parecidas. Além disso, alguns episódios também mostram como seus esforços não são em vão.

Uma vez, por exemplo, ele viu um homem ajoelhado na frente da imagem do Tranca Rua. Quando essa pessoa foi embora, deixou um cigarro e algumas moedas. Tempos depois, quando estava precisando de um jardineiro para sua casa, contratou alguém da região. E quando esse trabalhador foi até a casa, veio a revelação: “Ele veio para mim e disse ‘cara, eu já me ajoelhei na frente d atua casa algumas vezes pedindo oportunidade de emprego e hoje eu estou aqui cortando a tua grama’. Foi uma coisa que me fez arrepiar e pensar que, apesar da ruindade que algumas pessoas fazem, também tem uma parte boa”.

Em outra situação, uma mulher que estava acompanhada de suas duas filhas deixou um punhado de moedas de 25 centavos na frente da entidade. Curioso para saber do que se trataria, Moellmann chegou a pedir ao Seu Tranca Rua para que levasse até ele quem deixou a oferenda. E tempos depois, quando ele estava na frente de sua casa, uma mulher o chamou no portão e perguntou se ali funcionaria um terreiro. Ele respondeu que não, e a mulher então contou o que havia se passado.

“Ela disse que estava numa situação bem complicada, passou por aqui e deixou o que tinha de dinheiro, fazendo um pedido. E esse pedido foi atendido e ela queria me comunicar. Cara, aquilo ali me desmontou. Eu já estava acostumado a receber tanta pedrada, que a hora que a mulher veio e falou aqui junto com as duas filhas, eu pensei ‘acho que estou no caminho certo’. Aí outra vez ela veio e deixou uma garrafa de bebida ali pro Tranca Rua, que eu recolhi e toda segunda-feira sirvo pras entidades, para que eles realizem o pedido daquela moça.”