O exame de 20 anos da correspondência de Machado de Assis, de 1870 a 1889, revela que o maior escritor brasileiro queria ser mais bem compreendido por seus leitores. O período compreende o lançamento de livros fundamentais como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) – que à época, não foi bem aceito. Machado ficou incomodado, como mostra uma carta enviada a ele por Miguel de Novais, seu cunhado, amigo e um dos principais interlocutores, provavelmente em resposta a um relato lamentoso seu.

A 21 de julho de 1882, Novais, que era português, como a irmã, Carolina, e vivia em Portugal, lhe escreveu: “Parece-me não ter razão para desanimar e bom é que continue a escrever sempre. Que importa que a maioria do público não lhe compreendesse o seu último livro? – há livros que são para todos e outros que são só para alguns (…) Não pense nem se ocupe da opinião pública quando escrever. A justiça mais cedo ou mais tarde se lhe fará.”

“Isso mostra como ‘Brás Cubas’ causou perplexidade, por ser tão diferente. O público brasileiro só conhecia os romances de Flaubert, de Zola”, diz o acadêmico Sergio Paulo Rouanet, coordenador de “Correspondência de Machado de Assis – Tomo II – 1870-1889”, que está sendo lançado pela Academia Brasileira de Letras. “É a evidência do estranhamento diante no novo. Pela carta de Miguel de Novais, que consola Machado, temos ecos de seu discurso”, completa a pesquisadora Sílvia Eleutério, que, com Irene Moutinho, reuniu, organizou e comentou os 188 documentos do escritor, entre cartas, telegramas, bilhetes e cartões-postais. São 70 os missivistas.

Como no caso de Novais, há mais cartas dos interlocutores para Machado do que o contrário. Além do cunhado, um homem irreverente, que trata o escritor sem a menor cerimônia – o que surpreendeu as pesquisadoras, visto que se trata de uma personalidade notadamente austera e discreta -, há muitas cartas do colega de funcionalismo público Buarque de Macedo, do advogado Franklin Dória, do jornalista Salvador de Mendonça e do historiador Capistrano de Abreu.

As obras que Machado lançou no período – os romances “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878); “Falenas” (1870), livro de poesias, como “Americanas” (1875); e as coletâneas de contos “Papéis Avulsos” (1882) e “Histórias Sem Data” (1884), além de “Brás Cubas” -, vez ou outra são assunto das cartas. Machado, no entanto, só falava de um trabalho quando ele já estava terminado; era extremamente discreto, mesmo com os mais chegados. “Ele é muito fechado, sempre, ficava de boca fechada”, aponta Irene.

Uma carta que chama a atenção é a de Eça de Queirós, datada de 29 de junho de 1878. Nela, o escritor português responde a uma crítica negativa que Machado publicou, no periódico “O Cruzeiro”, com o pseudônimo de Eleazar, de “O Primo Basílio”, daquele ano, e de “O Crime do Padre Amaro”, de 1875. Machado acusou Queirós de plagiar “La Faute Del L’Abbé Mouret”, de Zola, no caso de “O Crime do Padre Amaro”, e desancou “O Primo Basílio”.

“Apesar de me ser em geral adverso, quase severo, e de ser inspirado por uma hostilidade quase partidária à Escola Realista, esse artigo todavia pela sua elevação, e pelo talento com que está feito honra o meu livro, quase lhe aumenta a autoridade”, escreveu Queirós. Foi uma das poucas polêmicas em que Machado se envolveu na vida.

O arquivo de Machado fica na própria ABL, e está digitalizado. O primeiro tomo das correspondências fora lançado no ano passado, e trazia como novidade duas cartas de amor do escritor para sua mulher – o terceiro, que vai até sua morte, em 1908, já está sendo preparado.

Desta vez, não há descobertas que revolucionem o que já se sabe dele. Mas é sempre delicioso saber das impressões (negativas) de Machado sobre a política nacional, a abolição da escravatura e o advento da República – ainda que não no discurso direto, e sim nas respostas de seus interlocutores -, ler os documentos referentes a seu trabalho como oficial de gabinete do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (era funcionário modelo), descobrir novos possíveis endereços seus no Rio (no Centro, na Glória, no Flamengo) e compreender o que se passava por sua cabeça em momentos importantes de sua trajetória literária – o início da fase dos romances e daquela identificada como a mais genial, que daria, em 1899, em “Dom Casmurro”.

“Nas cartas, os próprios amigos percebem que ele tinha deixado de ser o autor talentoso para ser o gênio. Existiu um corte na literatura dele e também em sua vida. Foi a passagem do Machadinho para o Machado”, analisa Rouanet.