Há coisas que acontecem mesmo nas melhores famílias. Na Inglaterra de todas as tradições, alugando um carro ou tomando um taxi na direção do aeroporto de Heatrow, basta rodar 40 quilômetros para chegar na aprazível Bray-on-Thames, à beira do rio Tâmisa, no condado de Berkshire. Com pouco mais de oito mil moradores permanentes, alguns na famosa “rua dos milionários”, orgulha-se de ter dois dos três únicos restaurantes ingleses merecedores de três estrelas pelo Guia Michelin. Um deles é o The Fat Duck, o Pato Gordo do título (os outros são o Waterside Inn e o Gordon Ramsey, este no bairro londrino de Chelsea), considerado o melhor do mundo pela revista Restaurant em 2005 e desde então sempre em segundo lugar, logo após o espanhol El Bulli de Ferran Adriá. Seu Menu-degustação, no padrão da moderna gastronomia molecular, tem como destaque o impressionante Nitro-scrambled egg and bacon ice cream (sorvete de bacon e ovos nitro-mexidos), criação do Chef e proprietário Heston Blumenthal. A receita: o creme é injetado em uma casca de ovo vazia que é rompida em sua mesa e então cozida, ou melhor, congelada com nitrogênio líquido junto a uma porção de ovos mexidos como se fosse um sorvete. A casa costuma lotar e reservas devem ser feitas com grande antecedência. O preço do Menu-degustação, ao câmbio atual do real super-valorizado, é uma verdadeira pechincha para casas desse nível: R$ 375,00 por pessoa. Taças de vinho selecionadas para acompanhar passo-a-passo a refeição lhe são servidas ao preço de R$ 476,00. Com a gorjeta de 12,5%, seu jantar sairá por R$ 957,40.
O mundo veio abaixo quando centenas de clientes tiveram dores abdominais acompanhadas por diarréia e vômitos depois de almoçar ou jantar no Fat Duck, entre 6 de janeiro e 22 de fevereiro deste ano, data em que Blumenthal decidiu por conta própria fechar as portas (reabriu em 12 de março), contratar um microbiologista e fazer uma limpeza de cima a baixo no estabelecimento. Tarde demais. Atendendo a queixas, a Unidade do Vale do Tâmisa da Agência de Proteção à Saúde inglesa (no Brasil o órgão correspondente é a Anvisa) realizou uma rigorosa investigação cujos resultados, agora publicados, confirmam que se tratou de uma infecção provocada pelo Norovírus. O restaurante resolveu nada esconder e forneceu uma lista completa de e-mails dos 3.500 clientes que lá estiveram no período do surto. O estudo, feito via Internet, constatou que 529 pessoas, mais de 15% do total (os demais, não afetados, constituíram o grupo de referência), sofreram de gastroenterite associada, conforme respostas em questionário e exame de uma amostra, ao consumo de ostras cruas e de moluscos contidos em outros pratos, como o “sons do mar” e o creme de lagostim.
O Norovírus, ou vírus de Norwalk, em homenagem à cidade norte-americana onde surgiu, tem como reservatório o homem que o transmite pelas fezes, em contato pessoa a pessoa ou via alimentos e superfícies que toca sem ter lavado as mãos. Saladas, canapés, que não são cozidos, logo se tornam veículos de transmissão. O vírus causa bastante incômodo, é altamente contagioso, mas a infecção não é séria e dura não mais do que dois dias. Surtos são mais comuns na Europa e EUA durante o inverno em áreas fechadas como restaurantes e navios de cruzeiro. Ostras são particularmente suscetíveis a contaminação e exigem procedimentos sanitários minuciosos antes de poderem ser consumidas cruas. O restaurante logo informou que as adquiriu de um renomado fornecedor, a Colchester Oyster Fischery (Colchester Pesca de Ostras) que, por sua vez, responsabilizou sua vizinha, a Anglian Water, empresa que faz tratamento de água e esgotos, por contaminar seus criadouros no rio Colne. A agência britânica considerou que o Fat Duck demorou a comunicar um problema que persistiu por pelo menos seis semanas durante as quais houve contínua contaminação dos alimentos e transmissão pessoa a pessoa. Funcionários que ficaram doentes não foram afastados do serviço e os produtos usados para limpeza não eram eficazes para eliminar o Norovírus. Entre as recomendações que devem ser seguidas de ora em diante, figuram medidas educativas para assegurar a compreensão de regras por funcionários que não falam bem o inglês. Weston Blumenthal pediu desculpas aos clientes e convidou a todos que tiveram problemas estomacais a retornarem para jantar de graça. Resta saber se aceitarão a oferta, ou se preferirão freqüentar as boas mesas dos concorrentes.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional. Doutor em Saúde Pública