Honduras está se transformando artificialmente em um barril de pólvora, graças à maneira com que a chamada comunidade internacional está conduzindo um problema que se resolveria pacificamente caso os esforços de mediação se concentrassem no principal, que é a realização das eleições, nunca desmarcadas pelo atual governo, de 28 de novembro e pela posse do governo que vier a ser eleito, conforme reza o calendário eleitoral (que o país vem obedecendo desde 1981) em janeiro de 2010. A confusão está sendo patrocinada por atores de alto calibre, como a Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, e o Secretário Geral da OEA, José Miguel Insulza, que fomentam abertamente a derrubada pela força do presidente substituto Roberto Bacheletti para reconduzir ao poder o eleito José Manuel (Mel) Zelaya, mesmo sabendo que este tem uma tal rejeição no seu país que seu retorno imposto de fora tem alta probabilidade de detonar uma revolução com derramamento do sangue dos hondurenhos.
Recordando os fatos, Mel Zelaya, cujo mandato de quatro anos terminaria em sete meses, tentou convocar uma Constituinte e impor sua reeleição, o que é formalmente vedado pela Constituição nacional, sendo destituído em 29 de junho – após desobedecer a sucessivas decisões contrárias aos seus intentos adotadas pelos Poderes Legislativo e Judiciário – e substituído, conforme o previsto na Carta Magna, pelo presidente do Congresso, Roberto Micheletti. Tudo estaria estritamente em acordo com a lei, não fora a desastrada ordem de fazer cumprir o impeachment (figura jurídica inexistente em Honduras) de Zelaya por meio de um comando militar que foi à sua residência para removê-lo para a Costa Rica, fato que desatou uma onda de protestos internacionais inicialmente comandada pelos aliados de Zelaya, na Alba. Seguiram-se negociações intermediadas pelo presidente costa-riquenho, o Prêmio Nobel da Paz de 1987 Oscar Arias, que propôs um acordo de sete pontos, começando pela restituição de Zelaya à presidência até o fim do seu período constitucional em 27 de janeiro de 2010, quando assume o candidato vencedor das eleições. Até lá, forma-se um governo de unidade; concede-se anistia geral; há a renúncia de Zelaya a colocar uma “quarta urna” nas próximas eleições (que implicitamente o autorizaria a reeleger-se); antecipam-se as eleições para o último domingo de outubro; transfere-se o comando das Forças Armadas ao Tribunal Supremo Eleitoral e, por último, forma-se uma Comissão de Verificação com representantes da OEA. O clima era favorável à aceitação pelas duas partes até que Mel Zelaya, numa entrevista à Folha de São Paulo, ao responder à pergunta: “O Sr. Está disposto a abandonar a proposta do referendo sobre a Constituição?”, disse que “não posso trair o povo inteiro e deixar o processo”, deixando claro que não cumpriria o que iria assinar em San José. Com isso, o chanceler hondurenho Uriel Vargas declarou a Arias que “sinto muito, mas resulta inaceitável sua proposta número um”.
As negociações prosseguem, mas a pressão pela guerra aumentou. Clinton ameaçou com a suspensão da ajuda econômica norte-americana; Insulza, de quem se esperava neutralidade, declarou que “Micheletti deve renunciar de maneira incondicional” e Mel Zelaya, incendiário e intérprete dos desígnios celestiais, afirmou que “a guerra civil já começou, há sangue correndo. Só Deus pode impedir meu regresso e eu asseguro que Deus não está com os golpistas”. Pelas porosas fronteiras com a Nicarágua, El Salvador e Guatemala, infiltram-se militantes bolivarianos armados até os dentes por Hugo Chávez e por Ortega, com a missão de apoiar o início já da batalha. A representação diplomática venezuelana em Tegucigalpa recebeu 72 horas de prazo para deixar o país, mas disse que não irá embora porque só acata ordens de Zelaya e de Chávez. Aos poucos, algumas vozes se levantam tentando acalmar os ânimos. Do Canadá, o chanceler Peter Kent disse que “de maneira firme, desaconselhamos um regresso (de Zelaya) a Honduras antes que se alcance uma resolução negociada”. O governo do Panamá considerou que as Forças Armadas hondurenhas agiram de maneira profissional e reconheceu que reina a ordem e o respeito à Constituição no território hondurenho. Em Manágua, a oposição pediu a saída de Zelaya, por estar desde lá fomentando e preparando a guerra no país vizinho.
A proposta de Arias cumpre a exigência internacional de retorno de Zelaya, mas para uma presidência curta e negociada. Não está claro qual será o papel e limites de atuação dessa presidência, nem como será possível organizar uma campanha eleitoral aberta, livre e pacífica em apenas treze semanas. Mesmo assim, é a esperança para evitar o conflito. No âmbito diplomático, caso não for aceita, como sugeriu o jornal guatemalteco Prensa Libre resta a saída de Micheletti e de Zelaya do cenário e a eleição de um terceiro pelas autoridades hondurenhas segundo a Constituição e sob supervisão externa, com mandato tampão até janeiro. Difícil, mas melhor que a guerra civil.
Vitor Gomes Pinto é Escritor. Analista internacional