Está de volta o debate sobre a modificação da Lei 2848 que Getúlio Vargas assinou em 7 de dezembro do longínquo 1940 estabelecendo que só “não se pune o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro”. Conhecedor da realidade, pois é médico com larga experiência hospitalar e não está disposto a seguir bancando pelo SUS, a cada ano, pelo menos 250 mil internações por complicações resultantes de abortamentos feitos em qualquer parte e em precárias condições, o Ministro da Saúde José Gomes Temporão propôs uma discussão ampla e, se for o caso, um plebiscito sobre o tema no país. Quando o fez, às vésperas da visita do Papa, motivou reações descontroladas de membros do clero (o bispo de Blumenau, Dom Angélico, chegou a chamá-lo de “ministro da morte”), mas a discussão foi reaberta.
Como tudo que é proibido, a prática do aborto gera um rendoso submundo no qual, à exceção de alguns poucos médicos aborteiros, quase ninguém é preso. A informação necessária a quem precisa corre de boca em boca, em conversas nos elevadores, nas cercas, nas periferias e nos salões de ricas sociedades.
É um vale-tudo no qual é possível encontrar solução para qualquer bolso. Há quem confie nos chás, de tintura de cravinho, losna, extrato de aloe vera, alecrim, erva de Santa Maria, ou enfrente uma mistura de cerveja quente com canela. Há quem apele para a violência de uma agulha de tricô, mas a maioria prefere o cytotec, vendido até pela internet (cerca de R$ 300,00 por 4 comprimidos). Quem tem mais recursos procura as clínicas ilegais (algumas oferecem, além do médico, um advogado) e quem não tem se contenta com as comadres, as “curiosas”. Quando ocorrem problemas, o caminho é o hospital público, do SUS, ou as casas de saúde privadas, para a curetagem.
O Brasil vem reduzindo ano a ano a taxa de fecundidade (calculada pelo número médio de filhos nascidos vivos por mulher de 15 a 49 anos) e não há dúvida de que o aborto tem boa parte dessa responsabilidade. A taxa era de 6,2 filhos por mulher até a década dos anos 60, baixou para 2,8 na de 90 e agora já chegou a 2,1 que é o nível de reposição populacional, ou seja, um para substituir o pai, um para a mãe e 0,1 para compensar as perdas.
É um fenômeno que atinge a todas as classes sociais. Estudos recentes como os de Diniz Alves (IBGE) e Cavenaghi (Unicamp) reproduziram os achados da rainha dos demógrafos brasileiros, Elza Berquó, mostrando que no Rio de Janeiro, em mulheres com rendimento superior a ½ salário-mínimo, a taxa de fecundidade era a mesma para residentes na cidade ou nas favelas. Há, entre outras, duas explicações para este fato surpreendente que desmente a teoria de que os mais pobres sempre têm prole maior. Uma é que os métodos ditos “populares” funcionam e até com agulhas e chás de alguma maneira a criança não nasce; outra é a atitude da mãe que, no Complexo do Alemão, não vê muitas razões para colocar um filho no mundo, mas não quer abrir mão de sua sexualidade. Os autores concluem que “a violência não é monopólio dos moradores da favela e a racionalidade não é exclusiva dos moradores da cidade”.
A Europa já resolveu há tempos o dilema, adotando em geral o limite gestacional de 12 semanas para autorizar o aborto sem restrições e a pedido da mulher (Portugal acaba de fazer um Referendo nacional e optou pelo limite de 16 semanas). Na Alemanha, Luxemburgo e em alguns outros países há um intervalo de um dia a uma semana entre o pedido e a cirurgia, no qual a mulher recebe orientação e aconselhamento para manter o feto. Na Suécia e na Dinamarca o aborto é feito em clínicas públicas sem custo. Malta é o único onde a prática é proibida e dá cadeia de 18 a 36 meses. Países de forte influência católica têm maior resistência à liberação do aborto, como no caso da Polônia onde a autorização só é dada quando se trata de risco de morte e para preservar a saúde mental e física da gestante.  Na América do Norte, enquanto o Canadá tem uma legislação considerada como das mais liberais do mundo e a Cidade do México aprovou este ano a descriminalização após muita discussão pública, nos Estados Unidos têm muito peso as restrições impostas pelo conservadorismo religioso que pretende combater o aborto e a Aids por meio da abstenção sexual e da prática de sexo apenas no casamento.
O direito à vida, à liberdade de escolha e à segurança pessoal têm justificado a adoção ou não de leis regulando o aborto. As posições mais extremas costumam ser, de um lado, da Igreja Católica, que o combate em qualquer etapa da gravidez e por qualquer que seja a justificativa, argumentando com o direito à vida do feto; de outro lado encontram-se movimentos feministas que defendem a legalização completa, com base no direito de livre escolha das mulheres em levar a gravidez até o fim ou em interrompê-la quando avaliarem necessário. Enquanto a discussão prossegue, ao arrepio da lei e sob a complacência da sociedade realizam-se cerca de um milhão de abortos por ano no Brasil (número com base na estimativa de que 20% das mulheres que fazem um aborto são atendidas pelo SUS ou em clínicas particulares). Há questões éticas, religiosas, morais, legais e de saúde pública envolvidas. São estas últimas que o ministro Temporão quer discutir e resolver. Espero que tenha êxito.  


 


Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional, Doutor em Saúde Pública