Namoro, noivado, casamento, paixão, filhos. Problemas, desentendimentos, desilusão, separação. Este roteiro vem sendo seguido nos últimos anos por muitos casais no mundo todo e, conseqüentemente, mudado a concepção das famílias. É cada vez mais comum encontrar casais nos quais uma das partes ou as duas tem filhos de outros relacionamentos. No entanto, herdar os problemas e desgastes da relação fracassada do outro não é fácil. Tanto do separado, que está cheio de culpa e de frustrações pela relação que não deu certo, como da outra parte, que está entrando na história cheia de expectativas. Para os filhos dos pais separados, então, nem se fale. E se a ex (ou o ex) não colaborar, a situação pode complicar ainda mais.

“O segundo casamento traz pressões que não existiram no primeiro As pessoas tem de ter muita maturidade para lidar com a conta negativa da relação que não deu certo”, observa a psicóloga-chefe do Núcleo de Orientação Familiar do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, Jônia Lacerda Felício.

Jônia elenca uma série de fatores que podem prejudicar a relação seguinte à que não deu certo: os filhos que têm medo de que o novo parceiro vá ocupar o lugar de seus pais verdadeiros e, por isso, não querem conviver com ele; mulheres que querem que o namorado ou marido cumpra o papel do pai biológico do filho; mães que usam os filhos para competir com a nova parceira do marido; homens culpados pela ausência na vida dos filhos, já que normalmente cabe às mães ficarem com os filhos; e namoradas que entram em rivalidade com os filhos para disputar a atenção do parceiro.

De todos os exemplos acima, Jônia diz que o mais comum observado por ela em seus mais de 15 anos de experiência na área de terapia familiar é o de novas parceiras que disputam a atenção do namorado ou marido com os filhos dele. “Isso é gerado pela fantasia que ela faz do relacionamento, especialmente se não tiver vivido um casamento antes. Ele, pelo contrário, tem uma visão mais realista da situação por já ter na conta uma experiência que não deu certo.”

Por isso, segundo Jônia, é fundamental que os novos parceiros, nesse caso, tenham consciência de que o saldo da conta herdada “não está zerado”, diferentemente do que ocorre em uma primeira relação.

NO DIVÃ – A bancária Kátia Amadi Braga, hoje com 33 anos, começou a namorar o marido, Sérgio Braga, 45 anos, há 10 anos. Embevecida pelo seu então professor de Química, Kátia só se deu conta da fatura quando começou a namorar com ele: Sérgio era recém-separado e pai de duas filhas pequenas.

Como a separação de Sérgio foi amigável, as filhas receberam a nova namorada do pai de braços abertos. A ex-mulher também não se incomodava com a nova namorada. “O problema era comigo mesma” lembra Kátia, única filha mulher entre três irmãos. “Eu era muito mimada e não gostava de dividi-lo com as filhas.” Segundo ela, em função do mimo a que estava acostumada, foi difícil conviver com uma pessoa para a qual ela não era a coisa mais importante do mundo.

Quando os dois se casaram em 1996, Kátia tinha de “engolir” as enteadas a cada 15 dias na casa deles. “Sentia até um pouco de culpa, porque elas sempre me trataram muito bem”, ri. A solução para a ciumeira começou a aparecer quando a bancária, literalmente, sentou no divã. Nas sessões, ela passou a entender melhor o marido – “ele sempre me dizia: ‘você vai me entender quando for mãe'” -, mas foi há cinco anos, quando nasceu Luiz Guilherme, que o sentimento “desapareceu de vez”. “Meu marido, realmente, estava certo.” Há um mês, nasceu Luiz Fernando, o segundo filho do casal. Agora, segundo Kátia, todos vivem felizes.

AMANTE E MADRASTA – Mas não é todo mundo que tem a maturidade de Kátia para admitir que o problema está em si e não no outro. Esse caldeirão de pressões de um segundo relacionamento, de acordo com Jônia, é fatal para minar a relação. “Na própria literatura da psicologia diz que é muito mais fácil um segundo casamento não dar certo do que o primeiro.”

Mas isso não significa que o segundo parceiro tenha de ser um “cordeirinho” e aceitar tudo. “É preciso conversar, dizer o que se quer, o que espera, se não, a vida dela será uma eterna renúncia”, diz Jônia.

Ela lembra que a vida da segunda esposa não é fácil, pois vive com o rótulo de amante e não de mulher do segundo marido. A terapeuta familiar Roberta Palermo, de 38 anos, lembra outro temível codinome que persegue a mulher do pai: madrasta que, por si só, já dá calafrios em muita gente.

A própria Roberta conviveu com os dois lados da moeda: teve madrasta e é madrasta. Transformou sua experiência no livro “Madrasta: quando o homem da sua vida já tem filho” (Ed. Mercúrio), e está tirando do forno um segundo sobre o assunto, ainda sem título, que será lançado em agosto. Para ajudar outras mulheres que enfrentam essa situação, ela fundou a Associação das Madrastas e Enteados (AME), uma espécie de Alcoólicos Anônimos (AA) do gênero.

Roberta começou a namorar o marido quando ela tinha 26 anos. Ele era recém-separado e com dois filhos pequenos. Quando se viu naquela situação, a terapeuta viu um filminho voltar em sua cabeça. “Eu não queria ser uma madrasta tão ruim como a minha foi para mim”, conta. Por conta disso, ela buscou a convivência com as crianças desde o início e, nessa tarefa, foi muito ajudada pela ex-mulher do marido, que sempre agiu com muita honestidade. “O problema era o meu marido. Ele se sentia muito culpado com a separação.” Tão culpado, que tinha medo de tudo dar errado de novo e de ter novos filhos, o grande sonho de Roberta. “Fui trabalhando a idéia de ter filhos na cabeça dele aos pouquinhos, sem forçar.”

EXERCÍCIO DE PACIÊNCIA – Como os filhos do marido eram pequenos, Roberta acha que a convivência torna-se mais fácil, já que as crianças são mais “administráveis”. “Sempre procurei cuidar, ajudar, mas sem entrar nessa de querer ocupar o papel da mãe, erro que muitas madrastas cometem.” Na educação das crianças, por exemplo, Roberta dá palpites, mas frisa que a última palavra sempre é do pai.

Construir uma relação assim, segundo Roberta, é muito difícil, um exercício de paciência constante. “O importante é saber o que você quer para sua vida. Eu queria muito ter filho, meu marido não queria. Aí pesei o que era mais importante para mim, ficar com ele, um homem tão bom, ou ter um filho. Escolhi ficar com ele.” Mas, com jeitinho, Roberta chegou lá. É mãe de um menino de 5 anos.

PIOR DEPOIS – Janaína (nome fictício) tem uma diferença de idade de 20 anos em relação ao marido, que foi casado por 23 anos e é pai de duas filhas adultas. Eles estão juntos há oito anos. Segundo Janaína, no começo a relação era difícil, “porque as meninas era mimadas demais e eu imatura demais”. Um tempo depois as filhas dele foram morar com o casal e a vida seguia seu curso natural, até nascer a filhinha deles, hoje com três anos. “A ex-mulher dele ajudou muito, dizendo que tínhamos direito de ter filhos.”

Como lembra Jônia Lacerda Felício, conviver não é fácil e, se o primeiro casamento já não é “um mar de rosas”, imagine o segundo “As pessoas se divorciam sem ter noção que serão anos difíceis, com muito trabalho para a vida, pois será uma reconstrução de tudo, da vida financeira especialmente. Tem de estar consciente de que não será tudo lindo daqui para a frente.” Mas, como viver implica correr riscos, não custa tentar dar mais uma chance ao coração.