Ao que tudo indica, trata-se de mais um caso em que o feitiço ameaça virar contra o feiticeiro. O presidente Álvaro Uribe criou as Cooperativas de Segurança Rural, às quais denominou de Convivir, na época em que foi o governador de Antioquia, o mais rico departamento (estado) colombiano, entre 1995 e 1997, para dar e vender proteção em áreas onde havia presença de grupos guerrilheiros. Essa foi a semente a partir da qual evoluíram os grupos paramilitares que se desenvolveram em todo o país formando uma confederação: as Autodefesas Unidas da Colômbia, as temidas AUC, verdadeiros esquadrões da morte em cujo passivo se contabilizam os mais cruéis e espantosos massacres da história nacional dos últimos anos.


As AUC na prática substituíram os famosos cartéis da droga de Cali e Medellín, desenvolvendo um sistema baseado em pequenas unidades autônomas fortemente armadas que passaram a lutar sem tréguas com os traficantes comuns e com os guerrilheiros das Farc e do ELN (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e Exército de Liberação Nacional) pelos pontos de comercialização e pela poderosa estrutura de transformação das folhas de coca em cocaína e sua exportação para os mercados consumidores dos Estados Unidos e Europa, principalmente. Quando Uribe chegou à Presidência da República em 2002, estimava-se que para uma população de 45 milhões de habitantes havia 555 mil homens em armas, uma média de dez combatentes para cada mil colombianos. Eram 21 mil guerrilheiros, 11 mil paramilitares, 147 mil militares, 90 mil policiais, 183 mil vigilantes urbanos (civis armados em empresas de segurança) e 3 mil “gatilleros”, ou seja, traficantes de baixo nível. Hoje, quando já passou o primeiro ano do segundo mandato de Uribe, esse número é de aproximadamente 579 mil, graças ao incremento nas forças armadas propiciado pelo apoio financeiro norte-americano.


Com base na Lei de Justiça e Paz, foi implantado um programa de desmobilização das AUC com promessas de perdão aos crimes cometidos ou de reintegração à vida civil com penas muito menores do que as previstas na legislação ordinária. O processo encerrou-se no ano passado com 30 mil paramilitares entregando suas armas (o número é quase três vezes maior do que o previsto, pois o processo tinha tantas vantagens que terminou por atrair a desempregados e bandidos comuns). Isso nem de longe significou o término das atividades do tráfico, mas pelo menos serviu para interromper os seqüestros e os massacres de responsabilidade da direita. A maioria dos desmobilizados hoje trabalha em milícias de segurança, nas brigadas rurais criadas pelo governo ou presta serviços ao exército e à polícia. Alguns estão presos e há cerca de 2 mil que permanecem como dantes na selva e nas montanhas controlando as áreas de produção de coca.


O decreto 3391/06 que regulamentou a lei estabeleceu penas alternativas de 5 a 8 anos (o código penal dá 60 anos em casos de seqüestros e massacres) para quem confessar seus delitos. Em conseqüência, a Colômbia assiste agora a um espetáculo quase tão sangrento quanto ao das chacinas em si, com a revelação lenta e gradual do ocorrido, por parte dos chefes do paramilitarismo. De um lado, começam a ser identificadas as fossas comuns onde pelo menos 10 mil sindicalistas, guerrilheiros, cidadãos comuns, soldados e militares foram enterrados (quando não eram jogados nos rios) muitas vezes após terem seus corpos desmembrados à força de machado para ocuparem menos espaço. De outro lado, é destilado o veneno de líderes como Jorge 40, Don Berna, Salvatore Mancuso, comprometendo a fundo aqueles que os financiaram, estimularam e deram guarida, todos com fortes ligações presentes e passadas com o governo Uribe. Eles estão falando de tudo, menos dos próprios crimes e de suas razões.


“O paramilitarismo é uma política de estado”, declarou Salvatore Mancuso, numa definição exemplar pela verdade que contém e pela concisão. O ex-chefe do Bloco Catatumbo das AUC, então conhecido como “El Mono Mancuso”, em seu primeiro depoimento implicou a três Generais, contando de como estruturaram juntos a expansão paramilitar na região de Urabá e a matança de El Aro, entre outras façanhas. Logo veio à luz o original do documento conhecido como “Acordo de Santa Fé Ralito” com 34 assinaturas dos principais chefes das AUC, senadores, deputados, três governadores de estado, empresários, que assegurou impunidade aos Paras e eleições tranqüilas aos políticos.


Quando foi apreendido o computador de Jorge 40, seus arquivos continham minuciosas descrições de como as autodefesas assassinaram a mais de 50 líderes sociais em Barranquilla; concretizaram uma aliança com vários congressistas, governadores e autoridades e, ainda, como múltiplos deputados, prefeitos, vereadores influenciavam e tomavam decisões a favor do paramilitarismo; como elegeram cerca de 35% dos congressistas e como eram financiados com recursos públicos ou asseguravam o atendimento a seus homens nos hospitais públicos. O resultado foi uma investigação pela Justiça que envolveu diretores de departamentos do Executivo federal, os governadores dos estados de Magdalena e César e quase toda a família da ministra de Relações Exteriores, Maria Consuelo Araújo, que pediu demissão.


O escândalo pouco a pouco compromete o esquema de poder do presidente Álvaro Uribe, mas até aqui não alterou seus índices de aprovação popular que seguem nas alturas. A sociedade colombiana está tão cansada da guerra que considera que os fins justificam os meios, por mais bárbaros que sejam.


 


Vitor Gomes Pinto


Escritor, analista internacional,


Autor do livro Guerra en los Andes