À medida em que o embaixador da República Popular da China no Brasil, Chen Duqing, avançava em sua apresentação na Universidade Católica de Brasília, uma profusão de novas possibilidades se abria, como numa revoada de pássaros que a cada instante modificasse o horizonte. “A integração da China no mundo é real e não há como retroceder”. “Quando a China permaneceu fechada, piorou; quando abriu, prosperou”. Depois de dois séculos enclausurada em si mesma, a China procura rapidamente recuperar o tempo perdido, mesmo porque tem um bilhão e trezentos milhões de bocas para alimentar. O embaixador não evitou tema algum e contou que numa visita a Pequim, o presidente Carter observou que no país não havia liberdade de locomoção, ou seja, os chineses não saíam da China. “Quantos o senhor quer no seu país?”, perguntou o presidente Deng Xiao Ping. “Vinte milhões são suficientes?”. Sem condições de absorver tanta gente (o que diriam os europeus, hoje mais xenófobos do que nunca), o líder norte-americano não levou a conversa adiante.
Na verdade, o país acostumou-se a resolver seus problemas sem ajuda externa, e espantou a todos ao retirar da miséria a 400 milhões de pessoas no último quarto de século. Nos tempos de guerra fria, procurou seguir o modelo soviético de desenvolvimento. Mais tarde, ensaiou imitar os americanos, sempre com maus resultados. “A China é a China e o Brasil é o Brasil”, concluiu Chen Duqing, sem negar que seu país continua tendo imensos problemas de desigualdades a resolver. Adotou um sistema de economia de mercado socialista, com resultados cada vez mais impressionantes no front interno e agora na África. Não por acaso Joshua Cooper Ramo, editor do Times Magazine, cunhou o termo Consenso de Pequim, em oposição ao Consenso de Washington, a fórmula adotada há dezoito anos pelo FMI (base teórica do tatcherismo e do reaganismo, entre outros) como guia para impor o neoliberalismo à América Latina e logo à Rússia, às novas nações da Europa Oriental e em geral às nações mais pobres, com os lamentáveis resultados que se conhece. Disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros e câmbio de mercado, investimento estrangeiro sem restrições, privatização de estatais e desregulamentação constituíram um coquetel quase letal para os países em desenvolvimento.
Acusa-se a China de estar promovendo um novo ciclo de desenvolvimento insustentável e de imperialismo. No entanto, não é ela a culpada pelas terríveis iniqüidades acumuladas pelo mundo e as tendências imperialistas chinesas estão sepultadas desde o século XV, no período intermediário da dinastia Ming. A última expedição chinesa para as costas africanas pelo oceano Índico, sob o comando de Zheng He em 1430, antecedeu o desmanche da armada (em 1503 a frota fora reduzida a 1/10 e vinte e dois anos mais tarde os grandes navios remanescentes foram destruídos) que era a mais poderosa e tecnologicamente desenvolvida do mundo antigo. A China renegava as teorias competitivas que na época acenavam com os benefícios dos negócios internacionais, optando pela pureza dos seus costumes e pelo isolacionismo dos bárbaros ocidentais, deixando o comércio marítimo à disposição dos impérios espanhol, português, holandês e mais tarde inglês.
A China hoje é o terceiro maior parceiro da África. Enquanto os dois primeiros, EUA e União Européia, insistiam em exigir compromissos indiretos como boa governança e transparência, os chineses diagnosticaram que o problema maior era a fome e ofereceram assistência ao desenvolvimento, empréstimos com juros baixos e trocas comerciais intensas com uma política baseada no bilateralismo, não interferência nos assuntos internos, respeito à soberania sem discutir o tipo de governo (o que levou a acordos inclusive com o Sudão, apesar de Darfur), igualdade e mútuos benefícios. Enquanto isso, a balança comercial Brasil&China não dá sinais de crise e, para alegria dos dois parceiros, cresce sem parar. 


Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional