Falei, na semana passada, sobre o deslocamento de significados e formas na arte e citei André Malinski, o Anilina, como um dos artistas que mais explora esta questão em suas obras.    Há um deslocamento de sentido que sempre gosto de citar, inclusive porque é uma obra de Picasso e como tal não deixa de ser um exemplo perfeito do que acontece quando formas conhecidas são arranjadas em nova disposição remetendo a outros significados. Este é o caso da “Cabeça de Touro”, na qual ele deslocou partes de uma bicicleta – numa analogia, a princípio, oculta – para que fossem reconhecidas no contexto de outra montagem, onde desempenham perfeitamente o papel da cabeça do animal, sendo o guidom os chifres e o selim seu crânio.   Interessante notar que aqui as formas, uma vez deslocadas são imediatamente relacionadas ao touro, sendo necessário um certo esforço para percebê-las como peças componentes de uma velha bicicleta. Este é realmente o jogo de Picasso, quase na forma de um chiste, de uma charada que o espectador resolve, até porque a atração que o trabalho suscita reside na descoberta, por parte de quem olha, da “sacada” inteligente do artista que se repete na do observador. Este é justamente o ponto em que a obra de arte se complementa, interagindo com olhar e mente do fruidor.   Entretanto, o que vemos nos trabalhos de André Malinski é diferente e muito mais sutil e, paradoxalmente, complexo.

  Vinda numa seqüência de obras motivadas pelo estudo da sacralidade religiosa, a obra de Anilina é citada, segundo proposição do crítico de arte João Henrique do Amaral: “Se a memória remete aos altares familiares, aos piedosos anjos e santos, rituais, catecismos, rezas e esperança, o acabamento esmerado, o rebordado refinado, as cores ‘fashion’, a manufatura cuidada de atelier de designer nos trazem para uma produção cosmopolita, chic, mas não só isso. Há o carnaval, o apoteótico, o popular em toda sua carga de terra, de raiz de costumes imemoriais . Há a ‘ausência’. Há a incômoda sensação do supérfluo, do brilho, do oco. Há a sensação de atualidade, da estapafúrdia rotina de jornais, valorização do externo, do oco ‘desaparecida’ santa popular, para ser uma expressão de cultura pop.”   O próprio enunciado acima já fornece pistas para que se possa ligar Malinski diretamente ao Dadaísmo, movimento artístico destrutivo-satírico que surgiu em 1916, na Suíça. Explico que o caráter destrutivo relacionado à arte Dadá nunca teve ligação com atos violentos contra pessoas ou instituições. O que ocorria, principalmente depois que o movimento se estabeleceu na Alemanha, eram atos artísticos, como vezes em que o povo em geral era convocado com urgência para se reunir numa praça ou em frente a um Banco do Governo. Numa época de tensão social, as autoridades ficavam apreensivas e convocavam a polícia com medo das manifestações mas quem comparecesse não veria absolutamente nada, a não ser um ou outro artista do grupo vagando por ali, observando quem tinha vindo, estes sim, completamente equivocados ou enganados.
  O caráter irônico do choque era alcançado também através da subversão dos meios tradicionais de expressão, tais como a imprensa, o livro, o teatro. Um exemplo famoso seriam as poesias que Hugo Ball apresentava no “Cabaret Voltaire”, local de encontro do grupo. Ao retirar o significado das palavras reduzindo-as a meras vocalizações, o artista fez com que, pela primeira vez, desde a pré-história da humanidade, se destacasse a importância do som gutural, completamente desconhecido – ou esquecido – pelos séculos de civilização e significação da linguagem. Não é preciso dizer que o teatro de vanguarda imediatamente retomou este uso do som primal.
  O deslocamento que Anilina executa passa por todos estes requintes de expressão, desde equivalentes aos utilizados pelos dadaístas, somando-se à montagem do touro de Picasso e aproximações à obra de Duchamp, até um deslocamento que lhe é peculiar, o da imagem que ilustra esta coluna.  São versões da santa que se resumem até onde é possível a redução. O estranhamento causado pelo recorte é uma configuração que retira a sacralidade da obra ao mesmo tempo em que a repõe pelo número de vezes com que a imagem é repetida. Por outro lado, esta imagem – em relação ao observador – se afasta e se aproxima ao mesmo tempo em que é diminuída e/ou aumentada.  A criatividade infinda do artista, que exigiria muitas palavras mais – só lembrando aqui o paralelo entre a repetição da imagem e das rezas dirigidas à santa – pode ser vista em seu site:www.anilina.vipflog.com.br .