Cicatriz da alma

Bem Paraná

   Entre outras qualidades, a exposição de Vilma Slomp, “Vísceras em vice versa” é, no mínimo, instigante. O tema equivale a uma denúncia e é bastante polêmico: um comovente registro de um fato ocorrido com a fotógrafa, que vem a revelar a dor, o desespero, o drama e o sofrimento pelos quais Vilma passou. E isto aconteceu ao ingerir um remédio receitado que dissolveu parte de seu trato digestivo.
  Transformando sua experiência pessoal em arte sensível da maior qualidade estético-artística – que é característica permanente em sua obra – Vilma exorcizou, pelo menos em parte, o pesadelo que viveu.
  Chama minha atenção que ela – seria presciência ou premonição? – ao longo de sua brilhante carreira de artista-fotógrafa, já vinha desenvolvendo em seu trabalho uma vertente focalizando os sentimentos, a pele, a vida, o corpo, os sinais do tempo, todos reunidos sob uma ótica lírica, na qual o “páthos”, ou aspectos do patético eram vistos em oposição à maldade do mundo.
  Agora, em seu próprio território – a arte – Vilma encontrou a resposta para sua dor, tornando pública uma questão crucial que envolveu a medicina, o despreparo e a saúde pública.
  Neste seu mais recente trabalho, a exposição e o livro com o título “Vísceras em vice-versa” dão testemunho de sua sensibilidade, aliás, já demonstrada inúmeras vezes no “clic” de suas fotografias.
  Esta mostra foi primeiramente apresentada na Pinacoteca de São Paulo, onde um jovem ator, Rodrigo Spina, identificou-se com sua obra e indagou se poderia montar um monólogo com o conteúdo. Vilma concordou e trocou idéias para o espetáculo e m final de outubro, a cena “Vilma Slomp – Vísceras em vice-versa” foi apresentada duas vezes, no festival de cenas curtas, realizado no Teatro Escola Célia Helena, São Paulo. O público foi estimado em cem pessoas e as respostas muito positivas. “Quem é ela?”, “Que textos são esses!”, “Me identifiquei muito com a obra dela!”.
  O mesmo se deu aqui, quando Rodrigo apresentou-se na Sala Scabi, no Solar do Barão. O ator prendeu a atenção da platéia que permaneceu em silêncio absoluto durante todo o espetáculo. Não de ouvia uma mosca, todos estavam estáticos, pois Rodrigo como intérprete soube empregar a exata dosagem ou dimensão no ato de representar. Sua atuação, extremamente respeitosa para com o texto e a pessoa de Vilma, além de invocar os sentimentos do público, fez com que ele transmitisse todas as nuances dos estados de alma no sofrimento pelo qual ela passou. Não me lembro de ter visto uma platéia tão quieta quanto aquela. Ao ponto que quando o artista finalizou por meio da foto “Vísceras em vice versa”, que mostra a cicatriz da fotógrafa projetada sobre o abdômen do ator, na representação do mesmo corte cirúrgico que Vilma sofreu, as pessoas ficaram sentadas, silenciosas no escuro e só depois de certo tempo – que considero longo para teatro – choveram as palmas efusivas.
  Voltando à exposição, destaco a curadoria da artista-fotógrafa, que foge ao habitual, na ousadia de pendurar fotografias no alto das paredes vermelhas, entremeando suas fotos com seus textos, criando uma atmosfera única, intimista, e até surrealista.
  Como ela mesmo escreve em carta a Décio Pignatari: “Com minha câmera, presto atenção no cenário quase fictício rolando à minha volta, pequenas delicadezas, a intuição, e a poesia da natureza que ajudam a minimizar a agressão e grosseria dos tempos difíceis de banalização de nossas vidas… Fotografar é minha forma de sonhar na arena, escrever na guerra vencida, é ilusão, mesmo sabendo que é mentira… Existe um céu sem rancor neste museu de emoções. Saber sentir o vento sobre nosso corpo, ouvir o silêncio para criar barulho. Na fotografia a chuva sobre o mar, evocando as raízes da memória, traz transparência e força ao meu espírito. Sou forte e espontânea, vou contra a maré, sou laboratório sem medo de sacrifícios. Não tenho todas as respostas sobre minhas fotografias, minha estratégia de defesa é o amor, o sangue e alquimia, coisas de libra/aquário, não gosto de quebras. Minha fotografia não é uma história inventada de inferno e céu, é o meu poder, é controle de sanidade sem nada a esconder”.
  Vale a pena visitar a exposição “Vísceras em vice-versa”, com 50 fotos em PB, permanece aberta até 29 de julho, no Museu da Fotografia Cidade de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 533 fone 41 3321-3269).