Outro dia, ao descascar uma maçã, percebi que havia recortado, sem querer, a silhueta de um gato. Isto me fez pensar imediatamente na questão da forma sempre presente na arte, e muito discutida após o advento da arte abstrata.
O primeiro artista a escrever sobre a semelhança entre as manchas de bolor nas paredes e formas da natureza com figuras humanas, animais ou objetos conhecidos foi Leonardo Da Vinci. Dedicando seu tempo ao estudo destas similaridades, o artista do Renascimento elaborou uma série de desenhos nos quais mostra sua preocupação com as formas repetidas ou copiadas da natureza.
E aqui vamos, uma vez mais, para a análise do que são as formas – já existentes ou criadas pelo homem, lembrando que a natureza sempre foi a inspiração primeira e mais direta para o ser humano. Um olhar para as ferramentas paleolíticas já demonstra isso. A pedra usada para cortar ou amassar alimentos era retirada da natureza, porém de acordo com certas exigências: ela haveria de caber perfeitamente na mão e também teria uma forma que possibilitasse o corte. Claro que ali o fator utilitário seria primordial, mas a forma também estava presente.
Na verdade, ali surgiu a ergonomia, que estuda as relações entre os objetos, suas dimensões e seu uso, adaptando-os às condições ou exigências humanas. Um automóvel, projetado ergonomicamente, vai possibilitar a entrada e a saída de passageiros do modo mais confortável possível. Digo isto porque nos dias de hoje este primeiro requisito de uso – entrar e sair facilmente de um carro – nem sempre é satisfatoriamente alcançado. E aí entram as famosas “batalhas” entre os designers preocupados com a forma, as dimensões do carro, as exigências do fabricante, o custo da fabricação e, principalmente, o lucro. Já tive um carro duas portas em que não conseguia travar a porta, a não ser que me inclinasse para a frente e virasse o corpo inteiro para a esquerda e com a mão direita o travasse. Pode? Será que a engenharia da fábrica não percebeu? Ou foi a forma é que prevaleceu? Ou o custo de adaptar a trava mais para a frente ultrapassava o percentual de lucro?
Em relação à arquitetura, em Creta, a forma das colunas do palácio de Cnossos provém do formato original dos primeiros troncos aproveitados como elementos de apoio nas construções. Retirados da natureza eles eram postos na vertical para segurar o teto. Mas então, se a forma provém dos troncos, porque no palácio, as colunas são mais largas em cima e estreitas em baixo?
Este formato, contrário à natureza, surgiu porque os troncos, uma vez aproveitados como colunas, criavam raízes e renasciam. Este fato obrigou os primeiros construtores, a virar os troncos de cabeça para baixo para evitar que a madeira voltasse a crescer. Assim, mais tarde, talhadas em pedra colorida de vermelho, as colunas conservaram seu vínculo – às – avessas com a natureza através do formato: largo em cima e estreito em baixo.
Da arquitetura clássica da Grécia antiga vêm outros exemplos: a coluna jônica, com voltas na que lembram os chifres de carneiro e a coríntia que surgiu depois que um escultor observou folhas de acanto saindo de um cesto e se contorcendo em direção ao alto. Ambos os elementos naturais foram reproduzidos estilizados.
Hoje, um simples olhar vai revelar traços, senão a forma perfeitamente reconhecida em tudo que nos rodeia. E aqui voltamos ao início do texto, a arte abstrata está por detrás de muitas coisas que nos parecem levemente familiares. As formas hoje em dia se diluíram, se modificaram; é como a figura do gato mostrada aqui. Foi uma coincidência, porém, no substrato para quem já viu um gato nesta posição, isto é a figura de um gato. Quando o figurativo imperava na arte, isto é, a figurinha tinha que “ser e parecer” um felino, estes cortes não seriam identificados como um animal. A partir do abstrato, foram criados novos modos de ver as coisas, inclusive as mais recentes linguagens artísticas, como a digital transformaram e ampliaram nosso gosto.
Não se pode esquecer que os objetos humanos, além do design, são formas provenientes do cérebro com a ajuda da natureza, em dois sentidos, no auxílio à concepção da forma e no fato da natureza ter criado nosso cérebro. Tudo está no mesmo barco, ou melhor dizendo, no mesmo planeta finito, portanto vamos cuidar bem dele.