É impressionante a capacidade de trabalho de alguns artistas.


Ao contrário que se possa pensar, não é dado aos artistas um dom que lhes garanta a contínua e imediata inspiração para elaborar uma obra de arte.


A idéia que o Romantismo disseminou – e até hoje ainda é considerada como um conceito verdadeiro – é aquela que o artista seria permanentemente um ser inspirado, respirando arte, e pronto para colocar na tela aquela momentânea visão do paraíso que lhe veio pela influência direta dos deuses.


Este pensamento, que implica na interferência divina para a realização de obra de arte, não deixa de ter certo fundamento pela observação que, muitas vezes, a criação da arte tem um vínculo com as tarefas demiurgas, ou seja, as realizadas por “criaturas intermediárias entre a natureza divina e a humana”, segundo o Aurélio. Isto acontece porque o ato criativo em si tem um componente mágico que, tanto pode ser relacionado aos deuses, quanto ligado ao artista quando se trata de elaborar formas, criaturas, cores.


Porém, o que realmente acontece é que os verdadeiros artistas estão sempre conectados à arte, aos meios que utilizam – técnicas, materiais – e muito mais, ao estudo, todos eles fatores que se aproximam da denominada educação permanente.


E, neste envolvimento total com arte, nunca vi outro artista tão comprometido como Rones Dumke. A filosofia alemã tem na palavra “weltanschauung”, que significa concepção e entendimento do mundo, exatamente os fatores determinantes que regem a vida e a contínua pesquisa de Rones. Quero dizer que a parte demiurga de Rones se instaura em seu trabalho; aí está o reino que o aproxima dos deuses e que provém da sua extrema dedicação à arte.


Já disse sobre ele que, além de estudioso compulsivo da história da arte, é o único artista que conheço capaz de citar de imediato a autoria e o título de obras artísticas, sejam da atualidade ou do passado, olhando apenas algum detalhe. Mostrem-lhe o recorte de um pé, uma mão, porções de um torso ou de uma vestimenta que, enquanto outros podem achar algo familiar na tentativa de identificação, ele não só declara a que obra pertence tal parte, como dá informações adicionais. E isso, sem confundir as características dos muitos artistas de épocas nas quais todos pintavam com certa semelhança como, por exemplo, os das bottegas italianas do Renascimento. Agora, e mais uma vez, Rones nos surpreende com o lançamento de um maravilhoso livro, realizado em dupla com o poeta e escritor Otávio Duarte. Intitulado “Clepsidra”, é uma primorosa criação plástica e lírica com projeto, produção e tratamento gráficos de Guilherme Zamoner; edição e organização da competente Mônica Drummond do Cultural Office.


Aliás, este é um time de primeira, complementado com Fernando Bini que assina o excelente texto de apresentação, no qual explica: “Clepsidra… nos remete ao passado: a um termo antigo que faz referência aos relógios d’água (relógio e água, tempo e fluidez), a querer medir o tempo que passa. Mas o significado completo do termo era ‘relógio de água para marcar o tempo atribuído aos oradores’. Como a água, que escorre quando circula pelo relógio, Clepsidra então representa esta passagem do tempo como a própria passagem da vida… Ambos, Rones e Otávio, são artistas conceituais, e esta obra é uma análise e uma reflexão sobre a perfeição e a harmonia – do passado, do presente, e até mesmo do futuro.”


Na amálgama de referências iconográficas, artísticas e analíticas, é criado pela semiótica de Rones e Otávio um padrão estético que ultrapassa em muito a “imagerie” de hoje. Num contraste violento de montagem, que propugna o retorno das antigas ilustrações, elas são agora reapresentadas em uma simbiose tão grande que ultrapassam – de modo conceitual e iconográfico – as limitações de tempo e espaço que as separam de suas origens à atualidade. As colagens são agora ampliadas pela união do lírico – elas agora falam – e da imagem – elas agora intrigam – e alcançam o ponto alfa.


Luz tão intensa não pode ser vista.


Um cisne, um touro, uma chuva de ouro.


Um fulgor, o mirar do arcanjo.


Otávio Duarte