Quando Vilma Slomp me mostrou seu mais recente trabalho, o livro “Vísceras em vice-versa”, percebi que tinha nas mãos uma das mais sérias e expressivas obras de arte que já vi.
Para o artista, sempre há uma parte de seu repertório na criação da arte. Este reflexo, a parcela da individualidade que só pode ser demonstrada por ele mesmo, é o que faz sua diferenciação entre os demais.
No caso da Vilma, tanto o livro como a exposição que o acompanha se complementam, um ao outro, perfazendo um comovente registro de um fato ocorrido com ela.
Inaugurada na Pinacoteca de São Paulo, a exposição de fotografias e textos de sua autoria criam uma atmosfera única, intimista, em certo sentido até surrealista, que revela a dor, o desespero, a angústia, o drama e o sofrimento pelos quais Vilma passou ao ingerir um remédio receitado que dissolveu parte de seu trato digestivo.
Transformando sua experiência pessoal em arte sensível da maior qualidade estético-artística –  que é característica permanente em sua obra – Vilma exorcizou, pelo menos parte do pesadelo que viveu.
Chama minha atenção que ela – seria presciência ou premonição? – ao longo de sua brilhante carreira de artista-fotógrafa, já vinha desenvolvendo em seu trabalho uma vertente focalizando os sentimentos, a pele, a vida, o corpo, os sinais do tempo, todos reunidos sob uma ótica lírica, na qual o “páthos”, ou aspectos do patético eram vistos em oposição à maldade do mundo.
Agora, em seu próprio território – a arte – Vilma encontrou a resposta para sua dor, tornando pública uma questão crucial que envolve a medicina, o despreparo e a saúde pública.
Nesse entremeio, um jovem ator, Rodrigo Spina, viu a exposição na Pinacoteca, ficou identificado com sua obra e indagou se poderia montar uma cena com o conteúdo.
Vilma concordou e trocou idéias para o espetáculo, resumido aqui pelo ator: “O público entra, e estou olhando para cima, encostado numa parede branca com uma câmera fotográfica na boca. A música de fundo chama-se ‘Dawn’ (cinematic orchestra). Tiro-a da boca lentamente, e começo a fazer auto-retratos. A cada clique da câmera, uma frase do texto : ‘flechas afiadas penetram chagas abertas…’. Na última frase: ‘Paisagem interior deteriorada’, foco a câmera sobre meu abdômen.
O figurino é composto por duas camisas. Uma vermelha por baixo e uma branca por cima, desabotoada e a manga dobrada. Ao final desse texto, muda-se a luz e a foto ‘Amputare’ é projetada sobre meu corpo. Começo então com a carta ao médico. Ao longo da cena, pego um batom vermelho e desenho duas linhas retas embaixo de meus olhos, simbolizando lágrimas e uma linha reta sobre o abdômen, simbolizando a cicatriz. (pensei sobre teatro japonês). Não há música agora.
Ao final, quando digo ‘Minha salvação é me expressar através da criação’, inicia-se a música ‘In a landscape’ do John Cage. Olho o público e pergunto: ‘têm medo de enlouquecer?’. Entra a foto: ‘Peritonite medicamentosa’. Começo o texto: ‘Vísceras em vice-versa é vingar na criação…’. dialogando com a imagem de Vilma na foto projetada na parede branca.
No fim do texto, pausa na música. Novamente, pergunto: ‘Têm medo de enlouquecer?’. Volta a música, outra foto: ‘Sou só poesia’. O texto é o do livro ‘Dor’, também de Vilma: ‘Sei de cór a côr da dor….’
No cenário, há facas, tesouras e garfos grandes fazendo um triângulo com a parede e no final saio dali em direção ao projetor. Na última frase: ‘Sem nada a esconder’, entra a foto: ‘Vísceras em vice-versa’. Caminho para o refletor até que a projeção fique sobre meu abdômen. Ao final da música, black-out.”
Rodrigo, em e-mail para Vilma: “Ontem, 21 de outubro, a cena “Vilma Slomp – Vísceras em vice-versa” foi apresentada duas vezes, no festival de cenas curtas, realizado no Teatro Escola Célia Helena, São Paulo. Mais ou menos, cem pessoas assistiram. E só tive respostas positivas. ‘Quem é ela?’, ‘Que textos são esses!’, ‘Me identifiquei muito com a obra dela!’, ‘As fotos são maravilhosas’, foram alguns dos comentários pós-cena.  E tive a certeza de que é tempo de você, Vilma, surgir nos palcos. A semente está pronta para germinar. O interessante foi descobrir o potencial cênico combinado entre seus textos e fotos, além do poder que já trazem em si”.
 A exposição “Vísceras em vice-versa” vai ser apresentada ao público no primeiro semestre de 2007, no Museu da Fotografia Cidade de Curitiba.