A voz do “Jornal Nacional” por quase três décadas é hoje a voz de Deus. Aos 79 anos, Cid se realiza com gravações de CDs bíblicos e palestras em igrejas. Só fica meio ressabiado quando ouve a própria fala. Nascido em Taubaté, interior de São Paulo, Cid Moreira foi logo para a Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, como narrador de programas humorísticos. Cinqüenta anos depois, hoje ele se realiza ao lançar a série de CDs “Bíblia em Áudio”. “Na Rádio Mayrink Veiga, pensava que voz eu teria aos 60 anos. Vou fazer 79 e posso dizer que ela é melhor do que era”, afirma o locutor, que concedeu a entrevista a seguir.


O senhor acha que tem a voz parecida com o que seria a voz de Deus?


Não, imagina isso (pausa). Olha, o que todo mundo imagina é algo assim, que Deus tenha essa voz grave. A voz é um instrumento, como se fosse um trombone ou sei lá. A questão é como se vai usá-la. Eu a deixava muito solene quando comecei a gravar discos com a narração da Bíblia, mas a experiência tem me mostrado que quanto mais natural, mais comunicação se consegue. Quem ouve os discos que estou lançando percebe que Jesus vai ficando mais humano, mais brando a cada CD.


O senhor gosta da sua voz?


Não, não gosto da minha voz.


Não?


Não, acho que tem muita gente melhor do que eu.


Quem?


Não vou dizer, mas tem.


O senhor está ficando cansado?


Cansado? Sou incansável. Antes de vir para cá hoje mesmo já fiz peso, bicicleta, às vezes jogo tênis.


O senhor leu no ar os editoriais da Globo por muitos anos. Era a voz do dono da emissora. Hoje, faz a voz de Deus lendo a Bíblia em CD. O que essas vozes têm em comum?


Eu tenho uma história para te contar sobre isso. Quando iria deixar o “Jornal Nacional”, depois de 25 anos, estava lançando também um CD com o Sermão da Montanha. Então bolei o seguinte para escrever na capa do disco: “Há 25 anos apresento o “Jornal Nacional”. Sempre levei muitas notícias, nem sempre boas, aos lares das pessoas. Quando não eram boas, procurava amenizar com um “boa noite”. A partir de agora, irei levar até o último dia de minha vida as notícias de Deus.


E aí começou a carreira com os discos religiosos?


Assim que eu deixei o JN me chamaram para gravar os principais trechos da Bíblia. Essas gravações, lançadas em banca, venderam mais de 25 milhões.


O senhor acredita em milagre?


Você fala o quê? Uma prova evidente da presença de Deus? Olha só. Eu sempre ia às igrejas para ler um salmo, as pessoas me convidavam. Um amigo me levou para ler um dia o salmo 103. Quando fui pra casa estudar o 103, abri a Bíblia e pá! Falo isso e fico até arrepiado. Caiu no salmo 55. Falava sobre uma pessoa que se sentia perseguida, com medo. Bati o olho e comecei a ler aquilo…


O senhor se sentia assim?


É a época em que estamos vivendo. O medo que temos de sair, no carro, de virar as costas e acontecer alguma coisa. Cheguei na Igreja e li o salmo 55. Pela primeira vez, a Igreja cheia, peguei o microfone. Nunca tinha me dirigido aos fiéis daquele jeito. Cheguei bem perto do microfone e comecei assim (a voz com um grave assustador): “Medo”. A Igreja tremeu “Medo. O medo te acompanha desde os primeiros passos na vida?” E fui falando do medo. “A salvação é Jesus Cristo”. O pessoal dizia “Amém”. E fui me entusiasmando com aquilo e falando mais e mais. Arrepio de lembrar.


Como foi o clima no estúdio durante as gravações dos CDs cristãos?


Já aconteceram coisas estranhas. Sabíamos, durante uma gravação, que no andar de cima do estúdio não morava ninguém Mas quando começamos a gravar iniciou uma barulheira incrível neste andar de cima. Aquele tumulto. A gente parou de gravar e o técnico foi lá ver o que era, mas não tinha ninguém. Uma lâmpada sem mais nem menos, estourou em cima da gente.


E o que vocês fizeram?


Havia um judeu convertido ao cristianismo que fez uma oração e o clima melhorou. Mas foi incrível.


A voz que envelhece fica melhor?


Eu vim de Taubaté, fiquei dois anos em São Paulo e fui depois para o Rio. E lá entrei na Rádio Mayrink Veiga. Na época a Rádio Nacional era a mais forte. Eu e mais dez profissionais fomos contratados para levantar a Mayrink Veiga, que estava caída. Chegamos lá e conseguimos isso. Apareceram com a gente o Chico Anysio, Zé Trindade, Grande Otelo. Eu narrava os programas de humor na emissora. Lembro que o Zé Trindade fazia a voz de velho com 60 anos. E eu ficava pensando que voz teria quando chegasse aos 60. Bem, vou fazer 79 e posso dizer que minha voz está muito melhor.


Nunca pensou em ser cantor?


Sorte do Roberto Carlos que não virei. Iria arrebentar com ele (risos).


Nunca se aventurou?


Eu tive problemas na época do rádio. A gente sentava na frente da orquestra e eu sempre tinha um companheiro, um segundo locutor. Geralmente o colega que me acompanhava não tinha o meu tom de voz. Eu trabalhei muito tempo com o Carlos Henrique e a voz dele era um tom acima da minha. Lá no palco, com a orquestra atrás, ele entrava e eu entrava no tom dele. Quando terminava o programa havia forçado tanto a voz que saía sem conseguir falar. Me disseram que eu tinha que ir estudar música. Fui consultar uns três professores de canto.


E o que eles disseram?


Um deles queria me treinar, disse que me levaria para ir cantar no Teatro Municipal. Mas eu saí fora.


O senhor no JN hoje seria melhor do que foi no passado?


Seria muito melhor, muito melhor.


Então não deveria estar lá?


Olha, capacidade física e domínio de voz eu tenho. Me considero hoje muito melhor do que eu era. Mas há fases. O cara, quando chega aos 70 anos, sai de cena. E tem gente que quer parar até antes. Eu não pararia nunca, gostava muito. Mas agora que parei também não quero mais.


Nunca se sabe se é lenda ou verdade a história de que o senhor apresentava o Jornal de bermuda.


Houve uma época em que eu não tinha folga, fiquei quatro anos na Globo sem tirar férias. Quando acabava o jornal eu pegava o carro, subia a serra e ia jogar tênis, ficava por lá e voltava só no dia seguinte. Um dia, em uma dessas descidas, eu vinha de bermuda e caiu um grande temporal. Alagou tudo, e naquela época não tinha a Linha Vermelha. Não teve jeito de passar em casa e fui para a Globo de bermuda. Eu tinha lá só o paletó no armário. Botei o paletó e fiz o jornal de bermuda. Engraçado, só mulher pode andar de minissaia, homem não pode (risos).


Homens de jornais pecam muito?


Assunto de jornalismo eu tô por fora, estou aposentado há dez anos.


O senhor nunca foi contra nenhuma decisão da Globo?


O profissional tem que vestir a camisa de sua emissora, de qualquer lugar em que trabalhe.


Não havia algo a que se opor lá?


Há, isso havia, mas sempre há. Mas se não gosta de algo, tem que pegar o boné e ir embora. Você no seu jornal tem de seguir diretrizes do editor. Cada jornal tem um pensamento e se você se insurgir contra aquilo, estará pedindo para ser demitido.


O senhor não acredita na independência de um jornalista?


Há uma autonomia, mas ela não pode e nem deve ser total. Imagina chegar um âncora na TV, por exemplo, e dizer as coisas que ele quiser.


O senhor disse certa vez que a censura dentro da Globo na época da ditadura era muitas vezes mais forte que a censura da ditadura.


Olha, você não tem um nome lá no jornal? Pode fazer o que bem entende? E se você fizer, não adianta. Vai chegar um editor e cortar seu trabalho. É como falei, você tem que vestir a camisa de onde trabalha.


Como era apresentar jornal na época que não havia teleprompter?


Um dia o então diretor do jornal, Armando Nogueira me chamou à sala dele e mostrou um telejornal que passava nos Estados Unidos: ‘Olha só como se apresenta um jornal lá fora’. Era um cara usando um teleprompter. Fiquei arrasado. Nunca iria conseguir fazer aquilo. O cara falava com a maior desenvoltura, dinamismo, rapidez. E sempre olhando para a câmera. Que humilhação. A Globo depois importou o teleprompter, mas teve um tempo de adaptação. Este aparelho tem um jogo de espelhos para você ler a notícia olhando para a câmera. Mas os técnicos não colocaram os espelhos e foi um Deus nos acuda. A gente lia embaixo e levantava o olho para a câmera. Quem estava em casa via a gente olhando para cima e para baixo e não entendia nada. Só depois de um mês descobriram que tinham de colocar o jogo de espelho.


A voz do senhor no Fantástico parece ter ficado mais dramática a partir das narrações do Mister M.


Nunca estou satisfeito e nunca digo ‘ah, sou o máximo’. Se pensasse assim não chegaria onde cheguei. Há apresentadores que terminam uma notícia e entram em outra e você nem percebe. Não muda o tom, não muda o ritmo. Isso confunde. Sempre tentei dar um pouquinho a mais que os outros não davam.