Os conflitos entre a secretária bilíngue Fátima Santos, 30 anos, e o analista de sistemas Ramón de Oliveira, 27, sempre acabam em pizza: meia quatro-queijos, meia vegetariana. Ela não gosta de queijo. Disse isso várias vezes, ele nunca escutou. Ou, se ouviu, a informação se perdeu no meio de tantas outras proferidas pela namorada. Elas falam demais, argumenta o time masculino. Eles não prestam atenção no discurso da mulher, rebatem as damas.
O diálogo, quando capaz de superar diferenças tão expressivas entre seus interlocutores, é prova de que partilhar um mundo a dois é um exercício de comunicação – mesmo que homens sejam de Marte e mulheres sejam de Vênus, como sugere o título de um dos livros mais famosos sobre relacionamentos.
Fátima está convencida de que situações cotidianas, como escolher o sabor da comida, poderiam motivar uma exaustiva guerra dos sexos se a vida do casal não fosse mediada pelo bom humor.
“Se for brigar até por causa de uma pizza a relação fica insuportável. Na hora a gente diz: ‘poxa, você sabe que odeio queijo!’. Às vezes, parece que a gente está falando em grego com o parceiro. Depois, percebe que na verdade o homem não está atento a esses detalhes”, diz ela.
“Acabo rindo do momento. Brinco dizendo que no começo ele fazia de tudo para me agradar, mas tem mulher que se irrita mesmo com isso, toma como desatenção. É a mesma coisa na hora de trocar presentes. Imagine que você vista 36 e ganhe uma calça 42: fica parecendo que a peça foi comprada para outra.”
Para Fátima, a divergência entre homens e mulheres é uma herança da infância. “Desde crianças aprendemos que o homem não chora e não sente dor. A menina, se chora, acham bonitinho. Aí, o homem cresce com essa ideia de que não pode mostrar os sentimentos e a mulher não entende isso”, opina.
“Só se chega ao consenso com o diálogo. E aí a mulher acaba sendo prolixa. A gente fala demais, podemos passar horas com as amigas e ainda sobrará assunto. Talvez seja o caso de ter mais paciência com as diferenças. Se compreendemos bem as faltas da amiga, por que discutimos por detalhes com o namorado? As pessoas estão egoístas, falta esse espírito de casal.”
O namorado de Fátima concorda com as explicações dela sobre a prolixidade feminina. “A mulher fala muito, é mais emotiva, quer desabafar. O homem quer resolver logo o problema, ser o solucionador. Só que elas já têm em mente o que irão fazer, não estão em busca de uma opinião. Só querem desabafar, mas o homem não é bom ouvinte, não lida bem com o excesso de informações”, diz Oliveira.
Mesmo diante de tantas diferenças entre os gêneros, ele acredita no consenso via diálogo. “O principal é ir para a conversa com a cabeça aberta, disposto a ouvir e preocupado em entender o que motivou uma determinada ação em vez de partir para afirmações e acusações.”
Terapeuta de casais há mais de 30 anos, a psicóloga Lídia Arantangy, autora do livro “O Anel Que Tu Me Deste”, argumenta que discutir a relação nem sempre é sinônimo de parceria.
“Isso é mito. A mulher, quando propõe a discussão, na verdade quer dizer: ‘senta aí, você vai ouvir umas verdades’. É claro que eles fogem! Homens e mulheres têm mecanismos diferentes para as mesmas situações.
Na briga, por exemplo, ela quer pôr tudo em pratos limpos para depois ficar em paz. Ele parte da lógica contrária: não conversa com o inimigo, primeiro quer retomar o clima de afeto e depois conversar. São reações diferentes e o problema é que a diferença é considerada uma afronta, em vez de ser festejada por enriquecer as experiências. No começo da relação o casal tende a escamotear essas diferenças e a reforçar as semelhanças, o que dificulta a sintonia.”
Se a divergência entre os sexos é certa, as consequências dependem dos envolvidos. “Ruídos sempre existirão na interação homem e mulher, mas eles podem soar como trovões ou como música. Depende do casal”, defende Lídia. “No geral, o papel conciliador é da mulher, mas ela não cede verdadeiramente. Vai, em algum momento, jogar aquele problema à tona”.
Essa ‘prodigiosa’ memória feminina, capaz de resgatar ofensas ditas há anos, contrasta com a suposta desatenção masculina a detalhes “A atenção dele recai sobre um foco: se está lendo o jornal não vai perceber que o bebê caiu do cadeirão. A mulher, porém, é capaz de perceber o cheiro de queimado na cozinha, prestar atenção ao barulho das crianças e ainda falar ao telefone. Não adianta cobrar isso dele: falar algo importante na hora do futebol não funciona.”
Fundador do Centro de Estudos da Identidade do Homem e da Mulher e coordenador do Grupo de Gêneros do Instituto de Psiquiatria do HC, o psiquiatra Luiz Cuschnir diz que o diálogo conjugal esbarra em estruturas emocionais distintas.
“O homem não está tão focado na relação amorosa quanto a mulher. É forte nele a questão do sucesso, da conquista do mundo. A meta geralmente não é um grande amor que preencha suas necessidades afetivas. Já a mulher, ainda que seja valorizada no setor profissional ou esteja confortável no campo econômico, sente-se incompleta se não há uma realização afetiva.”
Na avaliação do médico Nairo de Souza Vargas, professor doutor do Departamento de Psiquiatria da USP, as próprias características biológicas dos sexos, aquelas que reforçam a condição de gênero de cada um, interferem nos padrões comportamentais. “Nesse sentido, as ações dos hormônios desempenham papel fundamental.
Um exemplo é o período da TPM , no qual muitas mulheres se tornam irritadiças, ansiosas. Outro exemplo é o pós-parto: quadros depressivos podem ocorrer nessa fase também por conta dos hormônios. No caso das diferenças entre os sexos observamos que a testosterona, o hormônio masculino, está relacionada à firmeza e à iniciativa, ao passo que o hormônio feminino se relaciona com um perfil mais acolhedor, protetor. Esse padrão repercute nas ações. Se generalizarmos, podemos dizer que a mulher teria mais ligação com o lado afetivo, com a extroversão dos sentimentos, enquanto o homem estaria mais focado no pensamento”, compara.
Para o médico Marcus Vinícius Baldo, doutor em fisiologia humana pela USP e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento, as típicas diferenças de atitudes entre os gêneros refletem estruturas cerebrais igualmente distintas. “Os cérebros do homem e da mulher trazem características que se mostraram favoráveis ao longo do processo evolutivo. Assim, era interessante que a mulher da pré-história fosse apta a estabelecer interações sociais para viver bem com os filhos e com outras mulheres nas cavernas, ao passo que ao homem interessava a capacidade de se orientar espacialmente e o raciocínio lógico para capturar as presas. Ainda hoje trazemos essa herança milenar: as mulheres com mais fluência verbal, os homens mais voltados para a lógica”, detalha.
Baldo argumenta que a evolução biológica não se dá no mesmo ritmo do desenvolvimento social. “Hoje, vivemos em um século o que talvez levasse mil anos para acontecer no passado. Somos uma sociedade do século 21 com um cérebro pouco diferente ao de nossos antepassados de milhares de anos”, constata. “Ainda hoje, por exemplo, as áreas ligadas à fala são maiores nas mulheres. Assim, o homem deve entender que falar é uma expressão necessária do comportamento dela, da mesma forma que a mulher deve compreender que o homem não quer pedir informações para chegar ao destino mesmo que esteja sem rumo. Ele quer chegar sozinho. Perceber essas diferenças e aprender a conviver com elas é melhor do que tentar mudar o par.”
Segundo o especialista, as diferenças cerebrais não devem servir como suporte para relações de superioridade. “O homem ter mais neurônios não significa que é mais inteligente. Uma parte dos neurônios está relacionada à massa corpórea: quanto mais pele, mais informação tátil para ser processada. Já os neurônios femininos têm mais plasticidade, fazem mais conexões (ou sinapses). Isso pode ser desvantajoso sob o aspecto das doenças: se ela perde dez neurônios, o estrago será maior do que seria em um homem”, diz. “Outra diferença está no fato de o homem ter, em geral, um lado do cérebro dominante, o que justificaria o comportamento mais serial, focado em uma atividade por vez. Já a mulher usa o cérebro de modo mais simétrico, dizemos que tem funções bilaterais, o que poderia explicar o seu jogo de cintura e a habilidade, inclusive contemporânea, de acumular tarefas.”