
Em menos de dois anos, o MEC (Ministério da Educação) aprovou a abertura de 77 novos cursos de medicina no país, que. Juntos, eles ofertam 4.412 vagas de graduação. Os dados são de um estudo inédito da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
No mesmo período, 20 cursos de medicina já em funcionamento foram autorizados pelo MEC a aumentar o número de vagas, somando outras 1.049, o que totaliza 5.461 vagas de janeiro de 2024 a setembro deste ano.
Com isso, o Brasil atingiu neste ano a marca de 494 cursos de medicina, 80% deles privados, com um total de 50.974 vagas de graduação. É o segundo país do mundo com maior número de escolas médicas, só perdendo para a Índia (cerca de 600), país com mais de 1,4 bilhão de habitantes -o Brasil tem 213 milhões, segundo o IBGE.
Os dados foram solicitados ao MEC por meio da LAI (Lei de Acesso a Informação) pelo grupo de pesquisa Demografia Médica no Brasil, da FMUSP, que há 15 anos acompanha a oferta de médicos e de cursos de medicina. Parte deles não estava na base pública oficial do MEC (cadastro e-MEC).
Além dos cursos já autorizados, há outros 150 processos com novos pedidos de abertura ainda em análise pelo MEC. Setenta e cinco processos que pediam a abertura dos cursos foram indeferidos.
“Espanto”
“Causou-nos muito espanto tanto a quantidade de novos cursos quanto a autorização de mais vagas nos cursos antigos. Não há justificativa técnica ou evidências que justifiquem essa expansão”, afirma Mario Scheffer, professor do departamento de saúde preventiva na USP e coordenador do grupo de pesquisa.
Segundo ele, um estudo anterior mostrou que nenhum país do mundo passou por uma expansão de vagas tão acelerada na última década como o Brasil.
A partir do programa Mais Médicos, o número de vagas dobrou, passando de 23 mil, em 2014, para mais de 50 mil neste ano. Com o atual número, a projeção é que em 2030 o país tenha 1,2 milhão de médicos -5,3 por mil habitantes, quase o dobro da taxa atual, de 2,98 por mil.
Questionado, o MEC informou em nota que desde 2013, em razão da Lei dos Mais Médicos, a autorização de novos cursos de medicina é condicionada à aprovação em chamamento público, em que são definidos, junto com o Ministério da Saúde, quais são os municípios aptos para receber novos cursos, com base na necessidade social e capacidade de instalação.
Diz ainda que, mesmo com a moratória instituída em 2018, houve grande expansão no período de 2017 a 2022, com a criação de mais de 20 mil novas vagas. De 2023 a 2025, segundo o MEC, a abertura de cursos em instituições privadas deu-se pelo “estrito cumprimento de decisões judiciais”.
“Irracional”
“É um crescimento irracional, absurdo e inaceitável, que ocorre de maneira desordenada, com condições precárias de formação. Não há campo de ensino prático adequado”, afirma César Eduardo Fernandes, presidente da AMB (Associação Médica Brasileira).
Ele diz que o aumento de escolas privadas sem condições mínimas tem levado à formação de médicos de segunda categoria que hoje estariam alocados na atenção básica de saúde e nos pronto-atendimentos. Estabelecimentos privados de ensino superior que oferecem cursos de medicina refutam essas críticas.
Tanto a AMB quanto o CFM (Conselho Federal de Medicina) defendem que médicos recém-formados devam ser aprovados em exame de proficiência antes de começar a atender. Pesquisa Datafolha mostra que 96% dos brasileiros apoiam a medida. Um projeto de lei para criação de um Exame Nacional de Proficiência em Medicina está em tramitação no Senado desde 2024.
O MEC afirma que para assegurar a qualidade da formação médica atua em várias frentes, entre elas a criação do Enamed (Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica), que será aplicado anualmente, a partir deste ano.
“Haverá supervisão estratégica nos cursos de medicina que tiverem baixo desempenho, visitas de avaliação in loco nas instituições de ensino em 2026 e atualização das diretrizes curriculares nacionais de medicina”, diz a pasta.
Medidas
Entre as medidas cautelares estão impedimento de ampliação de vagas, suspensão de novos contratos do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), suspensão da participação do curso no Prouni (Programa Universidade para Todos), redução de vagas para ingresso e suspensão de ingresso de novos estudantes.
“É verdade que, com as novas diretrizes os cursos, passam a ter mais obrigações e os alunos também serão avaliados no quarto ano, antes do internato. Isso é muito importante, mas ainda não sabemos se haverá de fato fiscalização e fechamento de vagas em cursos mal avaliados”, diz Scheffer.
De acordo com o estudo da USP, a região Nordeste concentra 29 dos novos cursos autorizados pelo MEC, 37,7% do total. Em seguida, vem o Sudeste, com 19 (24,7%); Norte, com 13, (16,9%); Sul, com 12 (15,6%) e Centro-Oeste, com 4 (5,2%).
Os estados do Pará, Bahia e São Paulo lideram em número de novos cursos, oito para cada um. Em seguida, aparecem Ceará e Maranhão, com sete novos cursos cada.
Fora das capitais
Um dado que chama a atenção são os municípios fora das capitais que receberam autorização para a abertura de mais de um curso de medicina. Por exemplo, Vitória da Conquista e Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, ganharam dois cursos cada.
Sobral e Tianguá, no Ceará, também tiveram autorização para abrir dois cursos cada um. O mesmo ocorreu com Cariacica e São Mateus, no Espírito Santo, e Ariquemes, em Rondônia.
Segundo Mario Scheffer, como não há evidências que justifiquem esse tipo de expansão de vagas privadas, a suspeita recai para lobbies diversos, como pressões de prefeitos e parlamentares e de grupos privados de ensino e de hospitais.
“Há uma conjunção de lobbies nesse mercado de educação médica. Esses cursos que parecem avulsos são incorporados imediatamente por grandes grupos. Viraram a galinha dos ovos de ouro.” O preço médio das mensalidades nas escolas médicas é de R$ 10,2 mil, com variação de R$ 5,1 mil a R$ 15,7 mil.
O MEC informa que não recebe pedidos de autorização de curso de medicina fora do chamamento público, exceto nos casos decorrentes de determinação judicial.