Buscar refúgio nos alimentos considerados “besteiras” virou uma rotina para todos. Cada vez mais estressadas com o momento vivenciado pela pandemia do novo coronavírus, as pessoas passaram a comprar mais alimentos recompensadores, buscando reconforto na alimentação. Resultado: o consumo dos alimentos ultraprocessados disparou e, assim, a ingestão de mais gordura, açúcar, sal, realçadores de sabor, conservantes, corantes e outros aditivos. Enquanto a indústria celebra, a população acaba por escolher mais os industrializados e menos os frescos e caseiros, mesmo com a grande oferta de legumes, frutas e outros produtos naturais no país. Durante o final de março e começo de abril, de acordo com a empresa Horus, o consumidor das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo buscaram 55% mais uma lata de leite condensado nas prateleiras do mercado, enquanto o sorvete teve um aumento de 56% de procura.

Para Sophie Deram, nutricionista doutora da USP e autora best-seller “O Peso das Dietas”, o momento não é de se culpar pelo consumo das chamadas “comfort foods”.“Quando o prazer é proibido, a vontade aumenta”, conta Sophie, que acredita que a ansiedade causada pelo momento turbulento aumenta o consumo de alimentos com alto teor de gordura e açúcar. “Com a pandemia, todo mundo está mais tenso, mais ansioso. Por isso procuramos recompensa na comida. E não é o brócolis que traz essa compensação. São as comidas que têm gordura, açúcar e sal: nosso cérebro adora e elas fazem brilhar uma árvore de Natal na química do cérebro”.Qualidade dos ultraprocessadosMas enquanto os consumidores lutam para não descontar seus problemas na alimentação não planejada, a indústria comemora a alta do comércio dos alimentos ultraprocessados. Para a especialista, este tipo de produto já não é de qualidade e ainda pior no Brasil. “As multinacionais fazem, aqui, coisas que não poderiam fazer em outros lugares”, revela. A autora do best-seller “O Peso das Dietas”, da editora Sextante, defende a alimentação mais fresca e caseira, menos processada a fim de se evitar a adoção das chamadas “dietas da moda” que, segundo a nutricionista, são o gatilho perfeito para engordar. “Temos o direito de pleitear a melhoria na qualidade dos alimentos junto aos órgãos competentes, tanto os processados quanto os in natura. Mais vigilância sobre os agrotóxicos, mais alimentos in natura dentro dos processados e menos conservantes”, pontua. Mas, como poderia ser feita essa escolha por parte do consumidor? Sophie alerta que um dos grandes problemas está na legislação brasileira muito permissiva, que permite às empresas vender produtos não condizentes com o que está sendo apresentado ao consumidor, em suas propagandas e rótulos. “A embalagem do iogurte, por exemplo, traz a foto do morango, mas no produto quase não tem a fruta, apenas um xarope, um aroma”, conta. Para explicar a baixa qualidade dos alimentos ultraprocessados, a especialista usa como exemplo os produtos vendidos no continente europeu. “Se lá você pega o mesmo produto, da mesma empresa, ele vai ter de 8% a 10% de fruta. Ou seja, nosso país maravilhoso, em termos de diversidade de frutas, permite comercializar um produto com a imagem de uma fruta sem exigir a quantidade que seria correta”, lamenta Sophie.

Em uma sociedade que corre para poder cumprir sua rotina, em que pais trabalham fora e possuem altas contas a pagar, o trabalho doméstico acaba sendo algo fora de cogitação para a maioria dos brasileiros. Mas, para Sophie, há uma saída para a alimentação de maior qualidade. “É um desafio cozinhar, é verdade, mas é também uma questão de planejamento. Esse papel não deve ser somente das mães, mas também dos pais; temos que reorganizar a sociedade de acordo com os tempos atuais”, encerra.