Prosador reconhecido e multipremiado, o escritor Cristovão Tezza dá uma guinada de estilo e lança um livro de poesia: “Eu, prosador, me confesso” (Quelônio, 2017). O título, além de uma ironia bem-humorada, é uma referência ao que o escritor pensa sobre prosa e poesia e suas diferenciações. O prosador, segundo ele, constrói realidades e personagens fictícios, enquanto o poeta se confessa ao leitor. Sair da prosa para a poesia parece, mas não é uma novidade na vida do escritor.
É como se o autor retornasse a um lar em que já viveu, mas que esteve, se não abandonado, quase esquecido. No lançamento do livro em Curitiba, cidade onde mora, em meados de março/2018, amigos mais antigos lembravam que o tinham conhecido primeiro como poeta. Mas aqueles versos são como peças antediluvianas, afogadas em muitas camadas de água e de tempo.
Descobre-se um renovado poeta. Retorna em caprichada edição, com tiragem de apenas 300 exemplares numerados (que deveriam ser ampliados). A paulista Quelônio trabalha com edições artesanais, impressão tipográfica (capa e títulos montados à mão em tipos móveis e o restante dos textos em linotipia) e costura à mão em papel especial. Livros belos, raros e caros. No caso de Tezza, 56 páginas a R$ 60,00 no dia do lançamento em Curitiba. Mas quem disse que não vale?
Portfólio ou coletânea
Cristovão Tezza diz que “Eu, prosador, me confesso”, só nasceu por vontade da editora. Ele havia enviado um poema para uma coletânea e o editor Bruno Zeni perguntou se o prosador tinha mais escritos em versos. Com a resposta afirmativa, surgiu a proposta de um livro.
O autor de “O pai eterno” garante que todos os poemas publicáveis que tinha até então estão em “Eu, prosador, me confesso”. Mas gostou da ideia e não descarta continuar investindo em versos, mesmo que a prioridade continue sendo a prosa – tanto que acaba de lançar pela Todavia o romance “A tirania do amor”, sua 26ª obra publicada, se não me perdi nas contas.
As poesias do livro não surgiram de um projeto que tivesse como objetivo retratar um único tema. A obra é uma espécie de coletânea de únicos poemas, ou portfólio de possibilidades, com múltiplos focos e interesses.
Mesmo assim, com esse caráter de amplitude de temas, uma preocupação constante com o tempo e com a finitude permeia os 34 textos. O passar do tempo, as transformações do ser e suas incertezas são fundamentos poético-filosóficos que percorrem todo o trabalho.
É frequente o pensar sobre passado e futuro, e, também sobre um ser desconhecido que habitou o escritor um dia e agora é observado de um outro local e de um outro tempo. Afinal, pensamentos como esses ocorrem a qualquer um que passe dos 60 anos, ainda mais se for artista (Tezza tem 65, é de agosto de 1952).
Constante também é o uso do humor, característica marcante na personalidade do escritor. Um humor menos desbocado, quase tímido, auto-irônico, sutil. Este rir de si mesmo quebra certa angústia e melancolia baudelairiana que permeiam o livro. Aproxima o autor de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, poetas incontornáveis da literatura brasileira.
Escritor consagrado de romances, multipremiado com “O filho eterno”, o que o teria trazido da prosa para a poesia, do que serviu a experiência de tantos anos? São vozes que não se falam? Deixemos que o próprio autor se explique, começando pelos versos do poema “Livros”, na página 39 da edição:
“O que os livros fizeram de mim?!
O que eles disseram?
Não importa – sou página virada.
Uma depois da outra”
Poesia X Prosa
O prosador Cristovão Tezza afirma que para voltar a fazer poesia teve de readmitir a inspiração em sua vida literária. A prosa teria muito mais de transpiração, de um árduo trabalho diário e constante. Já a poesia não se dobra a essa exigência cotidiana.
“Não dá para acordar de manhã e falar ‘agora vou fazer um poema’ e depois de trabalhar algumas horas sair com o poema pronto”, afirma Tezza. Para ele, essa fórmula prosaica não dá certo na poesia (muitos poetas podem discordar dessa afirmação).
Haveria também, para o autor (e que também pode ser contestada por outros poetas), uma diferenciação de voz entre os dois estilos. Tezza escreve sobre essa diferença em seu livro “O espírito da Prosa” (Record, 2012) usando sua experiência como estudioso do filósofo e linguista russo Mikhail Bakhtin (1895-1975).
Ele cita duas frases de Bakhtin que o marcaram e que falam justamente sobre a diferenciação entre poesia e prosa.
Poesia:
“A exigência fundamental do estilo poético é a responsabilidade constante e direta do poeta pela linguagem de toda a obra como sua própria linguagem, a completa solidariedade com cada elemento, tom e nuança”
Prosa:
“O prosador não purifica seus discursos das intenções e tons de outrem, não destrói os germes do plurilinguismo social que estão encerrados neles, não elimina aquelas figuras linguísticas e aquelas maneiras de falar, aqueles personagens narradores virtuais que transparecem por trás das palavras de formas da linguagem […]. Deste modo, o prosador pode se destacar da linguagem de sua obra.
No primeiro caso, segundo Tezza, “o poeta acredita, ele mesmo, com toda a força de sua alma, em cada palavra e cada vírgula que escreve; o poeta diz a verdade. Ele é absolutamente solidário com o que escreve. E é só por isso que o poeta escreve”.
No caso do prosador, “ele fala pelos outros, há necessariamente uma substância ventríloqua na sua linguagem”. Ou, mais claramente, ainda nas palavras de Tezza sobre a voz do autor no espírito da prosa:
“O escritor tem de saber que a voz que ele escreve em cada instante do texto não pode ser completamente a dele. Se essa separação se apaga, morre o prosador, nascerá o poeta.”
O poeta Cristovão Tezza não nasceu com este “Eu, prosador, me confesso”, mas o livro traz à luz um tesouro escondido na gaveta, lapidado pelo tempo e suas consequências. Tentando não trair sua vocação realista, mostra-se um lírico racional. Une filosofia e humor para falar com sua própria voz.
O tempo é senhor
Desde o primeiro poema, o autor nos confronta com pensamentos sobre o tempo. O título, “Lar”, também pode carregar uma ironia pois marca o início da mudança do prosador, que era o ambiente natural do escritor até então, para a nova casa, feita de versos.
O poema condensa instantes e pensamentos que vão do final da tarde – “o irremediável tudo que se fecha” – ao início da manhã. Pode ser uma metáfora a uma certa fase da vida de uma pessoa, quando o dia vai findando, a noite é incerta como o dia que virá. Mas, se há incerteza, também há uma tranquilidade quase zen de quem já viveu bastante e tenta se preparar para o que aguarda a todos mais à frente. “Não há nada que assombre pelo novo” diz um verso.
A reflexão sobre o tempo continua pelo segundo poema e segue adiante. São versos como: “Queria lembrar da minha mão / Quando não havia manchas. Alguma coisa fora do tempo”, ou “… O tempo/ De cada pedaço não é o tempo/ Do todo, diz a equação” (A mão). Ou “a forma da mulher que eu amo é vivíssima/ na memória apagando-se em seguida/ em sutil sinapse” (Mulher). Ou ainda perscrutando um encontro entre o tempo e Deus, em “Teologia em quadrinhos”: “Nenhuma obsessão é maior que o Tempo/ Talvez Deus, é verdade”.
O tempo também transforma o poeta, que se olha de um outro ponto de vida como um ser duplo: “… meus dois se contaminam/ neste brilho no espelho”; ou “Minha holografia se desprende a pensar coisas de que nem sei” (Holografia).
O escritor também reflete sobre a palavra, a escrita e os livros. Tenta decifrá-los e conforma-se com a impossibilidade. “O que os livros fizeram de mim?!/ … / Lá se foram 60 anos: uma vida por escrito/ Champolion de mim mesmo:// a cada dia, uma nova cripta” (Livros). Ou “Boas mesmo são perguntas/ sem resposta. Assim suspensas/ no cotidiano simples…” (Ignorância). “Ah quem me dera o nome das flores!/ Formas e cores indesignadas” (Natureza).
A página em branco é um desafio: “Deste lado, a paz/ Ali, vazio, o terror/ … / e é preciso chegar/ do outro lado, sem a chave” (Página). Mas as palavras também são insuficientes: “as palavras descrevem o mundo/ mas não o entendem” (Ladainha).
Há uns escorregões, como o breve e inexplicável “Paixão”, ou o título machista “Vidinha de mulher” para um bom poema sobre o escritor às voltas com afazeres domésticos. Felizmente são poucos.
O humor aparece já no próprio título, “Eu, prosador, me confesso”. No poema “2017”, depois de uma série de versos políticos, de preocupação com a terrível realidade brasileira atual e de se mostrar indignado, o poeta dá o fecho: “(quanto a mim, malmequer,/ espremo os olhos míopes/ atrás de um foco qualquer.)”.
Em “Uótzap”, o poeta promove um encontro inusitado entre o concretismo e o poema-piada. Referências satíricas ao cotidiano digital, como se a tecnologia embarcasse no trenzinho do caipira.
É também o humor que encerra o livro com o poema Vanitas. A vaidade versus a dúvida do escritor. Monstros sempre presentes, espreitando mesmo no sucesso e na consagração. O humor irônico. O rir de si mesmo e de seus pares. A construção dos versos lembra o jeito de escrever de Dalton Trevisan. Uso a linguagem popular, ou o “falar cafajeste”, na descrição feita por Manuel Bandeira. Na mesa de bar, o autor consagrado e premiado tira do bolso um “papel amarfanhado” com “uns versinho… umas rima pobrinha” e pede: “Cê lê pra mim e me diz alguma coisa?”
Quem poderia ser esse autor consagrado, inseguro quanto à nova empreitada ao trocar, mesmo que temporariamente, a prosa pelos versos? Pois que não fique mais inseguro. O prosador Cristovão Tezza reencontrou-se com sua segunda voz, a da poesia. E as duas conversam como amigas que não se viam havia tempos. Com certeza ainda vão ter muito assunto pela frente.