Cultura

‘Angela’: bastidores da parceria entre Hugo Prata e Isis Valverde, em atuação digna de prêmio

Estadão Conteúdo

Houve um momento, por falta de agenda, em que Hugo Prata quase perdeu sua intérprete de Elis Regina, Andreia Horta. Ele chegou a testar outras atrizes, e uma delas foi Isis Valverde. Andreia voltou para o papel que era dela e ganhou todos aqueles prêmios, incluindo o Kikito de melhor atriz no Festival de Gramado. Mas Prata nunca esqueceu o teste de Isis. Sabia do que ela era capaz.

Ao decidir-se por contar a história de Ângela Diniz, a pantera de Minas, assassinada pelo amante, Doca Street – apelido de Raul Fernando do Amaral Street -, Prata nunca duvidou de que Isis seria gloriosa no papel. Acertou em cheio.

Angela abriu no sábado, 12, a mostra competitiva de longas brasileiros em Gramado. Se Isis não for a melhor atriz deste ano, não será por falta de competência. Gramado poucas vezes teve uma seleção tão grande de intérpretes femininas como em 2023.

Ângela é uma personagem complexa no roteiro de Duda de Almeida. Rememorando: bela, rica, sexy, ela separou-se do marido e cedeu a guarda dos filhos, que o ex-marido permitiu que continuassem com a avó. Ângela sofria por isso, mas, como diz a mãe dela numa cena, “Você tomou sua decisão, agora é seguir adiante com coragem.”

Quando convidou Duda para escrever o roteiro, Prata imaginava um filme centrado nos últimos dez dias da pantera. Com a roteirista, mudou o plano. O filme cobre os quatro meses da tumultuada relação de Ângela e Doca (Gabriel Braga Nunes).

Começa com o casal apaixonado. Doca é casado com uma socialite que paga suas contas. Abandona-a por Ângela, e passa a consumir caviar e champanhe às custas dela. A Ângela que ele conhece na balada é uma mulher exuberante. De certa forma, leva a balada para a cama.

As cenas de sexo parecem ter uma orquestra no quarto. Prata corrige o repórter: “Orquestra, não. São rock’n’roll, como a ligação deles”. Altos e baixos, paixão e violência. Doca torna-se possessivo, ciumento. Em 1977, Jece Valadão já contou essa história: Os Amores da Pantera, com a então mulher dele, Vera Gimenez.

Entrevistado por Clarice Lispector para a revista Fatos e Fotos, Jece deu sua versão. Ângela era uma suicida que encontrou em Doca – um romântico aventureiro – alguém para concluir o que ela não tinha coragem de fazer. Clarice retrucou que não era assim que via a história – quando a mulher resolveu terminar o affair, ele reagiu com violência.

Por amor? Não, porque ia perder a boa vida. Deu-lhe três tiros na cara, mais um na nuca. O roteiro deixa lacunas que o espectador deve tentar preencher. Ângela é contraditória. Ama os filhos, mas os abandona para seguir sua busca de liberdade. Ama o homem que a agride. Sua morte é muito anterior ao movimento #MeToo, mas foi transformada num slogan. “Quem ama não mata”.

Doca, ao desferir os fatídicos quatro tiros, diz a frase famosa: “Se você não for minha, não será de ninguém”. Isis foi fundo no papel, na personagem. Leu o livro que conta a história de Ângela, encontrou pessoas que a conheceram. “Todas me disseram que era uma mulher apaixonante. Era sedutora, mas tinha o sorriso mais triste do mundo. Mergulhei num poço sem fundo para tentar chegar à sua essência”.

Ao formatar o filme – e sua personagem -, Prata estabeleceu o conceito. Não seria um filme de tribunal, nem adotaria o olhar do assassino. Os advogados de Doca transformaram a mulher libertária em libertina. Invocaram uma figura jurídica – a legítima defesa da honra. Numa frase, ao refletir por que está afastada dos filhos, Ângela/Isis diz que a Justiça é dos homens.

Na época, o poeta Carlos Drummond de Andrade, sempre bom com as palavras, foi diretamente ao ponto. “Mataram Ângela Diniz e continuam matando todos os dias”. Ela foi desqualificada como mulher, como mãe. O filme deve estrear em 31 de agosto, em 200 salas de todo o Brasil.

O distribuidor Bruno Wainer, da Downtown, acredita no potencial de Angela. Bruno também distribuiu Elis, que entrou em 200 salas, aumentadas para 222 na segunda semana. Havia a expectativa de que o filme fizesse 300 mil espectadores – Elis fez quase o dobro, 560 mil.

Angela não é exatamente um thriller erótico. Como Elis, é sobre uma mulher angustiada. Elis canta numa festa dos militares e é massacrada por isso. Ângela quer ser livre e solta, e também sofre por isso.

O crime ocorreu na Praia dos Ossos, hoje Búzios, e Prata veraneava ali perto, em Cabo Frio. Era criança, mas acompanhou a comoção provocada pelo caso. O pai era um homem incapaz de proferir uma ofensa, muito menos às mulheres. A mãe e as irmãs seguiam o caso com indignação.

Exatamente no começo do mês deste agosto – dia 1º -, o Supremo declarou inconstitucional a tese da defesa da honra, muito importante num País como o Brasil, que é um dos campeões mundiais de feminicídio. Com isso, as questões debatidas por Prata tornaram-se mais atuais do que nunca. Angela, o filme, ganhou de graça um importante suporte publicitário.

Na ficção, reproduzindo a realidade, o casal de amantes vai morar numa casa de praia. Ângela, a rainha da balada, não é uma mulher solar. “Filmamos numa praia do sul da Bahia, Espelho, porque seria difícil, e sairia caro, reproduzir o look nos locais em que se deram os fatos”. Uma coisa chama a atenção: o céu está sempre encoberto, sombrio, antecipando o desfecho trágico.

“Filmamos na praia durante cerca de um mês. Tivemos sorte. Se tivesse feito sol, o filme estaria arruinado. São raros os momentos de felicidade em que a luz do sol é bem-vinda. A natureza ajudou, com aquele céu de chumbo”, explica o diretor.

E Isis: “Fiz um curso de interpretação com uma professora de Los Angeles. Estou querendo expandir meus horizontes, tentar uma carreira internacional, em inglês. Na verdade quero evoluir, ousar. Sinto que Angela é um passo decisivo neste sentido.”