São Paulo, 31 (AE) – Para Manuel Bandeira, seus olhos eram como “dois oceanos não pacíficos”. Mas, irresistível mesmo era sua voz, especialmente quando ela cantava a dor-de-cotovelo e a fossa em versos seus ou de Dolores Duran, Antonio Maria, Vinicius de Moraes, Jacques Brel, Tom Jobim. Com uma voz sofrida e sensual, além de uma vida tumultuada e explosiva, a cantora Maysa tornou-se um caso raro na música popular brasileira. Uma figura cujo fim jamais deixaria de ser trágico: há exatos 30 anos, Maysa morria em um acidente de carro, na ponte Rio-Niterói
Ela estava chegando aos 40 anos e ocupava uma posição única no cenário artístico nacional. “Maysa tinha consciência de que a causa de seu êxito estrondoso como artista – além da voz indiscutivelmente singular, meio rouca, meio aveludada – residia também na imagem pública que construíra como musa imbatível – e sofisticada – do desencanto e da melancolia.
Era uma espécie de Edith Piaf dos Trópicos, uma Julie London em versão nacional”, escreve o jornalista Lira Neto, autor do ainda inédito “Só numa Multidão de Amores”, biografia que a editora Globo pretende publicar em março.
A biografia exigiu um esforço supremo de Lira Neto, autor de “O Inimigo do Rei”, sobre a vida de José de Alencar. “Fiz cerca de 200 entrevistas, com cerca de uma centena de pessoas que conviveram com Maysa (colegas de escola, professoras, amigos, parentes, músicos, cantores, cantoras, empresários etc.)”, conta “Tive acesso irrestrito aos diários íntimos escritos por ela, desde os 15 anos até os meses que antecederam a sua morte.”
Lira Neto lembra que Jayme Monjardim, diretor de cinema e TV e filho único da cantora, forneceu cerca de 30 quilos de material do acervo particular de Maysa, o que inclui cartas, fotos e cerca de 100 mil recortes de jornais e revistas, do Brasil e do exterior. “Todos os capítulos têm títulos de músicas cantadas por Maysa”, observa.
Descoberta em um sarau grã-fino, Maysa ostentava um sobrenome aristocrático (Monjardim Matarazzo), mas era uma mulher com personalidade. Em todas as suas entrevistas, não escondia fatos e sempre arrematava com frases reveladoras, como “felicidade a toda hora é coisa de gente burra” ou “não há por que rir da vida: ninguém é hiena”.
A imprensa, aliás, buscava avidamente não apenas suas frases espirituosas, mas seus casos rumorosos – especialmente suas tentativas de suicídio. “Casos como esses estampavam as páginas dos jornais logo no dia seguinte e ajudavam a fazer de Maysa o assunto predileto das colunas que viviam de chafurdar a vida alheia”, escreve Lira Neto. “Apesar de reclamar do assédio da imprensa, o fato é que ela própria se divertia com as manchetes e notinhas maldosas que pipocavam a seu respeito. Colecionava com desvelo cada recorte de jornal ou de revista que trouxesse seu nome, ainda que em boa parte deles fosse descrita como uma mulher atormentada pela bebida e acossada pelas desilusões amorosas.”
TRECHO INÉDITO
Aos 22 anos, a jovem Maysa era uma das estrelas mais bem pagas da música brasileira. A estréia da temporada na boate La Bohème, que lhe renderia um cachê de 140 mil cruzeiros por semana, cerca de 30 mil reais (valor considerado astronômico para os padrões da época), havia sido um sucesso.
Era rica, famosa e cortejada por uma matilha de homens que dariam tudo para dividir um drinque com ela naquele abafado fim de noite do verão carioca (…) Enquanto os garçons ainda serviam doses generosas de cuba-libre, hi-fis e uísque aos clientes da La Bohème – e quando estes não haviam se refeito do vendaval emocional provocado por mais uma apresentação de Maysa -, ela chegou em casa, tirou a roupa e abriu a torneira da banheira.
Era 11 de fevereiro de 1958, uma terça-feira. Ninguém pode dizer exatamente o que houve entre aquelas quatro paredes ladrilhadas de branco. Só se sabe que os vizinhos foram acordados por um grito de mulher no meio da noite. Nos dias seguintes, a notícia estava no rádio e nos jornais. Maysa tentara se matar, cortando o pulso esquerdo com gilete.