De “Charles Chaplin subdesenvolvido”, no entender de Nelson Rodrigues, a fenĂ´meno da comunicaĂ§Ă£o de massa, na anĂ¡lise do pensador francĂªs Edgar Morin, o fato Ă© que Chacrinha foi o mais original e revolucionĂ¡rio dos apresentadores de programa de auditĂ³rio da TV brasileira. Com o dom do improviso e senhor de uma alegria circense, ele desestruturou regras de um meio que sempre dependeu da organizaĂ§Ă£o. “Foi um revolucionĂ¡rio, um cara totalmente disruptivo e que transformou tudo por onde passou. Ao mesmo tempo que apresentava uma caracterĂ­stica de palhaço, tambĂ©m tinha do comunicador de massa com uma inteligĂªncia impressionante”, observa Micael Langer que, ao lado de Claudio Manoel, Ă© diretor do documentĂ¡rio Chacrinha – Eu Vim Para Confundir e NĂ£o Para Explicar, que estreia nos cinemas na semana em que Fausto Silva, cujo programa praticamente substituiu o do Velho Guerreiro na Globo, anunciou sua saĂ­da, apĂ³s 32 anos no ar.

Trata-se de uma variada coleĂ§Ă£o depoimentos – alguns, de artistas que jĂ¡ se foram como Chico Anysio e Gugu Liberato – que, em sua estrutura de mosaico, buscam traçar o perfil de JosĂ© Abelardo Barbosa de Medeiros (1917-1988), criador da persona Chacrinha, nome mĂ­tico que comandou extravagantes concursos de calouros, revelou grandes nomes da mĂºsica brasileira e inventou bordões tanto originais como infames. Era ainda um homem bipolar, meticuloso com o trabalho, obcecado pela mediĂ§Ă£o da audiĂªncia, mas impaciente com as pessoas que o rodeavam, disparando palavrões e impropĂ©rios.

O documentĂ¡rio mostra diversas fases de sua vida, desde o inĂ­cio de carreira do jovem pernambucano como locutor de rĂ¡dio, atĂ© a chegada ao Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar na RĂ¡dio Tupi e seguir para a televisĂ£o, na qual passou por quase todas as emissoras do PaĂ­s, consolidando uma carreira de sucesso entre as dĂ©cadas de 1950 e 1980.

“Chacrinha soube usar a ferramenta da comunicaĂ§Ă£o em massa de uma maneira que ninguĂ©m tinha feito antes. Era um gĂªnio da comunicaĂ§Ă£o, sĂ³ que travestido de um palhaço de estilo popular”, continua Langer. O documentĂ¡rio traz informações conhecidas e outras nem tanto. Como a suspeita de que Chacrinha teve um caso extraconjugal com a cantora Clara Nunes, confirmada por um dos operadores de cĂ¢mera do programa.

Outra histĂ³ria pouco conhecida Ă© revelada por JosĂ© BonifĂ¡cio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que comandou a Globo entre as dĂ©cadas de 1970 e 1990, concebendo o formato bĂ¡sico da emissora que se mantĂ©m atĂ© hoje. Em 1972, Chacrinha decidiu, num Ă­mpeto, trocar a Globo pela Tupi, abrindo um buraco na programaĂ§Ă£o. Boni, entĂ£o, recorreu a Roberto Carlos, grande amigo do Velho Guerreiro.

“Eu falei o seguinte: vocĂª faz um Ăºnico programa por ano (que daria origem ao seu tradicional especial de Natal) e apresenta agora 11 programas Globo de Ouro no mesmo horĂ¡rio do Chacrinha na Tupi.” Roberto relutou, argumentando que tinha sido praticamente lançado pelo Chacrinha. Boni, entĂ£o, apelou: “Roberto, coloca entĂ£o aĂ­ a nossa amizade, sua histĂ³ria na Globo e tambĂ©m o fato de eu ter cancelado seus patrocinadores de bebida alcoĂ³lica como vocĂª me pediu. E aĂ­ ele fez”.

AlĂ©m disso, Boni orientou a criaĂ§Ă£o do FantĂ¡stico que, ao estrear em 1973, logo dominou a audiĂªncia da noite do domingo, achatando ainda mais o ibope de Chacrinha: a Globo cravava 50-60 pontos e a Tupi ficava com 10-12. “Mas Boni e Chacrinha sempre foram amigos, apesar de tudo”, explica Langer. “Ou, caso contrĂ¡rio, Chacrinha nĂ£o teria voltado para a Globo em 1982, retomando a carreira de sucesso que manteve atĂ© os Ăºltimos anos de vida.”

De fato, o Velho Guerreiro voltou a bater recordes de audiĂªncia nas tardes de sĂ¡bado, com atĂ© 52% de share. Ficou na emissora atĂ© morrer em decorrĂªncia de um cĂ¢ncer de pulmĂ£o, em 1988, aos 70 anos. VascaĂ­no de coraĂ§Ă£o e apaixonado pela Portela, foi enterrado com as duas bandeiras sob seu caixĂ£o.

Em todas as entrevistas mostradas no documentĂ¡rio, destaca-se a opiniĂ£o unĂ¢nime de que Chacrinha era a personificaĂ§Ă£o de um Brasil livre, solto. O pĂºblico, de todos os nĂ­veis sociais e econĂ´micos, se encantava com aquela forma miĂºda de andar do Velho Guerreiro, os abraços abertos para a plateia, a voz rasgada ligeiramente rouca e atĂ© minĂºcias, como a forma de acertar os Ă³culos no rosto. “Hoje, o que fica Ă© um sĂ­mbolo, uma ideia, uma lenda, algo que estĂ¡ muito acima do homem e do personagem”, observa Langer.

As informações sĂ£o do jornal O Estado de S. Paulo.