Em uma carta a Mário de Andrade, seu principal interlocutor, o poeta Manuel Bandeira dizia desconfiar da própria prosa. Era 1930 e Bandeira temia cometer “bestidades, bobagens, lugares-comuns” em seus artigos, satisfazendo-se mais com a poesia. O tempo tratou de reverter a expectativa negativa do poeta, como comprova o volume Crônicas Inéditas I, lançado pela Cosac Naify (440 páginas, R$ 65). São 113 textos inéditos em livro, que pertencem ao mesmo filão criativo de Crônicas da Província do Brasil, lançado pela mesma editora em 2006, também com organização de Júlio Castañon Guimarães, e que traz um conjunto de artigos que compõem um retrato muito agudo da modernização da sociedade brasileira da primeira metade do século 20. Se este foi editado originalmente em 1937, Crônicas Inéditas reúne as observações de Bandeira publicadas entre abril de 1920 e agosto de 1931, em 13 diferentes publicações.
Trata-se de um vasto painel em que o poeta versa sobre assuntos diversos, como teatro, cinema, pintura, música erudita, arquitetura, poesia e o mundo das artes. “Em todos esses textos há sempre uma parte de ironia, ou mesmo de auto-ironia, sendo importante detectar isso para perceber seu processo de acompanhamento da produção cultural da época”, observa Guimarães, no posfácio, contrariando os temores do Bandeira-cronista. “Seu trabalho na imprensa transita entre a crítica e a crônica, o que lhe permite e o leva a referir-se às especificidades e generalidades dessas atividades em diversas ocasiões.”
Apesar do conhecimento que insiste em negar (ou esconder, por modéstia), Bandeira trata tanto de assuntos espinhosos como banais com a mesma ironia, sem resvalar no tom professoral. Com isso, ele se impõe como um dos poucos que não exerceram a crônica como é vista hoje, ou seja, no entender de Antonio Candido, quando ela “deixa de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo para virar conversa aparentemente fiada”. Ao contrário: Bandeira trata com firmeza de fatos curiosos, como o primeiro arranha-céu do Rio, o sucesso do cinema falado e a febre do primeiro concurso de miss Brasil. Um fino retrato da sociedade carioca e seus personagens pitorescos.
Em uma crônica publicada em 1930, Bandeira conseguiu retratar tanto a movimentação militar quanto a reação popular no golpe que levaria Getúlio Vargas à Presidência. “De seu texto, brota a descrição das pessoas cujo ar era o de quem estava fazendo História”, comenta Júlio Castañon Guimarães, organizador do primeiro volume de Crônicas Inéditas – um segundo está por vir. Bandeira oferece testemunhos preciosos sobre a vida brasileira (carnaval com chuva, mania de discursos bonitos, jornalismo sensacionalista), além de tratar as artes de forma crítica (a literatura de José de Alencar, a arquitetura de Le Corbusier, as variações sobre o violão, novas concepções do urbanismo, o mito Picasso). “São peças de uma ampla reflexão, desenvolvimento de uma longa, inteligente e refinada conversa”, observa Guimarães na entrevista abaixo. Confira um trecho da entrevista com o organizador.
AGÊNCIA ESTADO — Como explicar a “confluência de estilos” que caracteriza a obra de Bandeira, tanto poética como na crônica?
Júlio Guimarães — Acho que tem a ver com um projeto a que a sua produção estava ligada. Aqui e ali se encontram elementos de alguns temas (as vezes documentais) que reaparecem ora na poesia ora na prosa. Havia um projeto modernista mais amplo, que naturalmente se configurava de modos distintos nos diferentes autores. Num mesmo autor, como Bandeira, não é de estranhar essa confluência, embora seja sempre bom lembrar a grande distância que vai de sua prosa com motivação mais circunstancial e sua elaboração poética.
AE — O que Bandeira quis cobrir com sua escrita?
Guimarães — Se pensarmos na escrita configurada, na prosa produzida para a imprensa, me parece que ele se interessava sobretudo pela vida cultural, e isso no sentido da cultura dita elevada ou mais erudita, com algumas incursões pelas variedades do cotidiano. Isso é bem claro nessa produção dos anos 20 e 30. Mais tarde, a situação se modifica, mas é outra história.
AE — Em uma antiga crônica, o poeta disse: “Não quero mais saber de coisas efêmeras. Deus me livre de guardar afeição a passarinho: eles morrem à toa.” Seria essa uma reação idêntica à crônica?
Guimarães — Em um certo sentido, a crônica está ligada ao registro de acontecimentos os mais variados; está assim ligada ao efêmero, mas teria justamente a intenção de preservar do esquecimento esses fatos. Mas ela acaba sendo também comentário, análise, visão crítica. De modo que me parece que ela acaba por não ter esse caráter efêmero, podendo permanecer tanto pelo que registrou quanto por sua elaboração.
AE — Bandeira conseguiu a grandeza em um gênero considerado menor e fugaz?
Guimarães — Pode parecer contraditório falar em grandeza em relação a um autor em torno do qual se criou uma espécie de mitologia da simplicidade, mas o fato é que os textos de Bandeira produzidos para a imprensa têm importância em vários sentidos; são obra de autor excepcional.
AE — Rubem Braga nomeava-se um “cozinheiro do trivial”. Bandeira teria seguido outro caminho?
Guimarães — Parece-me que a crônica de Bandeira, pelo menos nesse período dos anos 20 e 30, não tem a nada a ver com a crônica que se desenvolveu posteriormente. O trivial é algo que surge ocasionalmente, e no fundo ele está sempre preocupado com grandes questões – o urbanismo, a arquitetura, as artes plásticas, a literatura, a música erudita.