A cidade de São Paulo é a nova paixão de Lobão. Do alto dos seus 51 anos, o cantor decidiu se cercar dos prédios e da paisagem cinza da capital a fim de dar início a uma nova fase de projetos. O mais importante deles é sua autobiografia. No livro – escrito a quatro mãos, com o jornalista Claudio Tognolli -, o velho lobo vai revelar o personagem que viveu intensamente os altos e baixos de uma carreira que teve como cenários as loucas noites cariocas, shows lotados, a prisão, o suicídio de seus pais…
João Luiz Filho, vulgo Lobão, recebeu a reportagem em sua casa, na região oeste de São Paulo. Verborrágico como de costume, se cercou de uma cerveja e de seus dois gatos antes de engatar a conversa, em meio a um pequeno jardim suspenso.
Agência Estado — Por que a mudança do Rio para São Paulo?
Lobão — O fator preponderante foi o estado de miséria intelectual do Rio de Janeiro. Pô, eu adoro samba, mas ficar vendo falso sambista branco universitário querendo dar uma de malandro não dá. Junte isso aos blocos carnavalescos com as pessoas mijando na rua. Aquilo virou uma bagunça.
AE — Você até compôs uma música em homenagem a São Paulo.
Lobão — Fiquei cinco anos sem compor e comecei a ter aquela ideia de que não conseguiria mais escrever. Me obriguei como se fosse um dever de casa. São Paulo é a coisa que mais me motiva atualmente. Meus amigos todos vieram para cá. Pitty, Cachorro Grande, Nação Zumbi, os nomes que interessam estão aqui. Vamos inventar os anos 2010. Essa nova MPB que está aí é fake, é regurgitada. Não vai ficar para a história.
AE — Como assim?
Lobão — O (escritor) Ruy Castro falou que sou um merda como músico. Aí, quando perguntaram para ele por quê, ele respondeu que toco rock e que o rock não muda há 40 anos, tem dois acordes e gelo seco. Que é muito diferente da Bossa Nova. O preconceito reside nesse culturalismo barroco inócuo que eles possuem, porque nunca fizeram nada até hoje. Só se autovangloriam de uma coisa de 1960. Esses caras ficam assustando os jovens, dando carteirada. Falam que a geração deles que era f… Hoje, temos acadêmicos, pupilos, esse povo não banca uma ruptura. A Bossa nasceu em um berço anacrônico e retrógrado.
AE — Você tem diálogo com essa geração?
Lobão — Consigo tomar cerveja até com o Marcelo Camelo. A gente discordava em gênero, número e grau. Ficava indignado porque ele gostava da Maria Bethânia. Falava: “Você é jovem, não caia nessa gandaiada síndrome de dignidade intelectual. Do artista maduro que para de fazer rock’n’roll.” Mas era um ótimo o papo.
AE — E as novas cantoras?
Lobão — O arquétipo da cantora brasileira é o cabelo desarrumado, pé no chão, riponguice, o sovaco bem cabeludo. Tipo Doces Bárbaros. Tudo isso é falso e não vai se sustentar. É um retrocesso cultural.
AE — O que te motivou a escrever agora sua biografia?
Lobão — Tem gente lançando biografia com três anos de carreira. Decidi fazer agora porque preciso me livrar dessas histórias. Mas ainda estamos em fase de confecção. Talvez até vire um filme. Pensei que poderia dar um livro de 800 páginas só falando do período do Vida Bandida. Sobrevivi a muitas coisas.
AE — Você chegou a ser viciado em drogas?
Lobão — Nunca, era muito resistente. Quando tinha dois anos, comecei a tomar cortisona. Fui o primeiro caso a ser curado de uma nefrose no Brasil. Só ganhei alta aos 12 anos. Sempre tive fobia de agulhas, assim como meus ídolos, Eric Clapton, Jimi Hendrix… Mas, nos anos 80, passei seis meses sem sair do quarto uma vez, assistindo a filmes trash. Só recebia contato exterior com pizza e heroína que deixavam debaixo da porta. Estava tão doido que só percebi que tinha piscina na casa depois que saí.
AE — Você foi amigo do João Guilherme (o Johnny, de Meu Nome Não É Johnny).
Lobão — O João Guilherme traficante foi inventado por mim. Ele cheirava muito e eu falei para ele começar a vender, já que não fazia nada da vida. As festas aconteciam na minha casa. Mas ele foi delicado de não ter me colocado no filme. Eu era da diretoria, tinha cocaína com 97% de pureza, era literalmente um bandido, cheio de cordão de ouro, gordão. Eu achava que estava fazendo história.
AE — Isso foi depois que você saiu da prisão, em 1987?
Lobão — Fiquei três meses preso, saí, mas fui condenado a mais nove meses. Fugi do Brasil, fui gravar meu disco e fiquei um ano sem ver a minha filha, que tinha três meses. Foi uma perseguição. Tive 132 processos. Imagina o preconceito. Fui preso com um galho de maconha e um papel que não tinha quase nada de cocaína.
AE — Virou rei na cadeia?
Lobão — Depois que saí da prisão, com a minha performance excelente, fiquei colega. Botava Vida Bandida na mesa de autópsia, levava drogas para a galera, virei síndico. Aí, comecei a me sentir bandido mesmo. Queria invadir o Palácio das Laranjeiras e colocar um trabuco na cabeça do Moreira (Franco, governador do Rio na época). Virei mascote do Comando Vermelho, dei tiro, fui assistir ao James Brown no Maracanãzinho com todo o Comando. Fiz minha tour pelos morros. Mas fiquei num xilindró dos piores. Era de enlouquecer. E os caras faziam tortura psicológica, dizendo todo dia que eu ia sair.
AE — Os artistas estavam a seu favor?
Lobão — Todos foram legais, fizeram abaixo-assinado a meu favor, menos um. Eu ia fazer o meu primeiro Chacrinha depois da cadeia e me avisaram que o Gonzaguinha não tinha assinado porque me achava um roqueiro capitalista que tinha mais é que ficar na prisão. No domingo, todo mundo se reuniu na Globo e o Chacrinha me chamou no camarim. O Ivan Lins estava lá e o Gonzagão também. Quando ele me viu, me chamou de ídolo e disse: “Faço questão de tirar uma foto ao seu lado, mas quero o meu filho Gonzaguinha também aqui.” Imagina a cara de peido do Gonzaguinha…
AE — Anos depois, você foi um dos mentores da numeração dos CDs, em 2003.
Lobão — Mas tudo teve início muito antes, nos anos 80. ‘Me Chama’, por exemplo, vendeu 23 mil cópias e tocou mais do que “Menina Veneno”, que vendeu 1 milhão de cópias. Tocou mais do que RPM, que também vendeu 1 milhão. ‘Vida Bandida’ vendeu 320 mil cópias quando eu fui recorde de público nos estádios de todo Brasil, tocando para 100 mil pessoas. Cheguei a ser ameaçado de morte por um diretor de gravadora quando quis fazer a numeração de CDs naquela época.
AE — Os grandes da MPB eram a favor também?
Lobão — Em 1987, o Chico Buarque fez o quartel general dos músicos e toda semana nos reuníamos na casa dele. Paralamas, Cazuza, Lulu Santos, Renato Russo, Caetano Veloso, uma fauna. Mas aí rolou um lobby no Congresso que aniquilou a lei e todo mundo ficou pianinho. Rolava desde ameaça de perda de contrato até perda da vida.
AE — Falando em Cazuza, você era grande amigo dele.
LOBÂO — O filme do Cazuza nunca poderia levar o crédito de “baseado em fatos reais”. Se fosse um romance, tudo bem. Eu era o melhor amigo dele, estávamos sempre cheirando cocaína juntos e eu nem sou citado no filme. Cheiramos até em cima do caixão do Júlio Barroso (líder da Gang 90, morto em 1984).
AE — Mas, voltando à numeração, tudo mudou em 2003.
Lobão — Em meados de 2002, fui cercado por artistas independentes, logo no calor da numeração. Toda a classe recuou. Na numeração, só estavam Beth Carvalho, Ivan Lins e Frejat. Estava muito descrente do meio musical.
AE — Foi nessa época que você lançou “A Vida É Doce” nas bancas.
Lobão — Fiquei muito triste que este disco não tenha tido o crédito merecido. Ele foi sendo entendido durante o tempo e foi o primeiro disco numerado que vendeu 100 mil cópias. Acho uma obra-prima.
AE — Foi nessa época em que você quis se matar?
Lobão — Sim. Eu sou um narrador autoconsciente o tempo todo. Lembro de todas as vezes em que tentei me matar. Hoje, não tenho mais crises porque descobri que sou bipolar e comecei a me medicar. Meus dois pais se mataram, cada um no seu tempo. Minha mãe tentou se matar 20 vezes. Percebi que isso é químico.
AE — Seu último show em São Paulo não teve quase nada de músicas dos anos 80. Por quê?
Lobão — Nos anos 80, era impossível fazer um som bom no Brasil. E hoje me interesso pelas coisas que vivo no momento. Eu não era aquilo que sou hoje. Tenho uma trajetória para construir e sou completamente diferente, quero viver a minha história. Se quisesse viver do passado teria uma patrimônio muito legal, mas sou irrequieto, sempre tento me reinventar. Sou uma espécie de autista. Tenho uma intensa vida interior (risos).