A casa de Marcos Valadão Rodolfo impressiona pela sobriedade, uma combinação de bom gosto e conforto com zero de ostentação. Sugere o lar de uma pessoa discreta e humilde, adjetivos que não costumam ser reservados ao seu proprietário. Afinal de contas, é um homem polêmico já em seu apelido, convertido em nome artístico: Nasi.
O ano de 2008 teve o fim da banda que o tornou famoso. O Ira! encerrou suas atividades depois de 27 anos, e de forma nada amigável. Contrariando a tendência de colocar panos quentes que costuma ser a regra nesses casos, Nasi revelou as brigas por dinheiro e ciúmes que causaram o rompimento – isso depois de sofrer uma tentativa de intervenção judicial comandada por seu irmão, André Rodolfo, e assinada pelo pai de ambos.

Enquanto os processos correm nos tribunais, Nasi tem ido a público constantemente para explicitar detalhes incômodos sobre o fim de uma relação que servia como inspiração para os fãs da banda. E nessa entrevista, realizada em duas sessões feitas na residência do cantor, fica claro que sua semelhança com o Wolverine não é só nas costeletas. Como o personagem dos quadrinhos, Nasi sabe que nem tudo se resolve com violência. Mas quando o ataque é necessário, não há quem o detenha.

Jornal do Estado — Vi um show em 2003 e você estava totalmente distante. Parecia o Liam Gallagher (rs). Já vinha de longa data o clima ruim?
Nasi — Foram várias crises. E diga-s: não existe banda sem crise. Ainda mais com a história da gente.  Mas as duas maiores foram depois das dos discos ao vivo que a gente fez para a MTV. O Ao vivo não foi um sucesso tão grande como o Acústico, mas foi nele que as vaidades bateram de frente. O Ira! entrou naquela crise de “vamos fazer um outro disco?”

JE — Era uma crise recorrente?
Nasi — Não exatamente. Naquela ocasião, Edgard mergulhado no trabalho solo, deixou a gente esperando mais de um ano, queria sair da banda mas também não queria. E enquanto ele não tivesse composto para 80% do disco, não ia aos ensaios, não apoiava as idéias dos outros, fazia uma espécie de “greve branca”. E ainda tinha que ter a (irônico) “música para ele cantar”. Porque ele é assim: tem carreira solo, mas quer cantar, tocar todos os instrumentos, produzir, só não quer bater palma. Isso ele deixa pros outros.

JE — Quando foi o “começo do fim”?
Nasi — Vou contar uma coisa que, em termos de destino, talvez tenha deixado um racha em nossa relação. O Ira! acabou em 1995. As coisas que vou contar pra você  prometemos que iriam ficar entre nós. Não tenho mais necessidade dessa cumplicidade, até porque não estou acusando ninguém de nenhum crime. Foi o seguinte: a primeira metade da década de 90 foi muito ruim pra gente e pro rock nacional. Era Collor, o rock em baixa e o sertanejo em alta, foi a época de maior excesso de todos nós. Sempre tinha confusão.

JE — Inclusive  uns “recolhimentos pra delegacia”.
Nasi — Verdade. Mas sabe o que foi? Teve um período aí que era moda no interior bater em banda de rock. Na cidade de Americana, saímos com escolta militar. As bandas  do Cazuza e do Lobão apanharam.  Tinha um clima assim: “esses caras vem aqui, pegam nossas minas, pegam nosso dinheiro”… Nesse show de Americana, o André (Jung, baterista do Ira!) saiu de mão dada com uma garota e o namorado dela atrás. O resto de nós estava no ônibus. Quando vi, tinha uns playboys do interior – e pleiba do interior é pior – provocando. Aí, de uma hora pra outra, o Edgard dando autógrafo na janela, os roadies carregando o equipamento, um joga cerveja na cara do Scandurra, outro dá um tapa na cara do roadie… Foi um pega pra capar, saímos do ônibus, fomos pro pau… Saímos escoltados.

JE — Foi uma seqüência de momentos pesados.
Nasi — O que mais pegou foram os excessos. Junta a crise com excesso de drogas e de bebidas, fica pior. Eu tava no fundo do meu poço. O Edgard tinha uma noiva, chamada Beatriz, uma bailarina de flamenco. Era comum o casal ir na minha casa fumar um baseadinho à noite. Depois de um tempo, ela começou a ir sozinha.

JE — O Edgard sabia?
Nasi — Ela vinha com a desculpa de que ele estava gravando com o Arnaldo Antunes e ela não gostava do Arnaldo. E ficava lá, dava uma bola, essas coisas.  Aos poucos, começou a mostrar um puta rancor contra o Edgard pelos chifres que ele botava nela. Quando ela falou: “não conte pro Edgard que eu venho aqui”, percebi o problema. Até então pensava que o Edgard sabia.

JE — E não teve como resistir?
Nasi — Você junta os fatores: do jeito que eu estava, destrambelhado, não soube lidar com isso, e começou o envolvimento. E eu percebi que ela na verdade queria uma vingança contra o Edgard. Pois tinha a coisa de ela aparecer de sopetão em hotel, e o ele falar: “não é bem esse tipo de coisa que você tá pensando”! (rs). Acho que ela quis fazer essa vingança, mas esse é um jogo muito perigoso. Acho que ela se envolveu. E quando eu recuei, ela se apaixonou mais ainda. Porque a mulher adora caçar o homem. Se ela perceber que você ta fugindo, ela bate palma.

JE — Então ela também insistiu?
Nasi — Guardo as cartas dela até hoje. Olha o tipo de situação que eu vivia: a gente na estrada, ela com o Edgard, e quando paravamos num restaurante para almoçar, ela ficava passando a perna debaixo da mesa. Sabe aquela coisa que você vê em filme? Eu no hotel e ela batia na porta. Eu surtava: “o que você ta fazendo aqui?” Ela dizendo que ele saiu, e eu: “não, pára, dá licença!”

JE— Como foi o fim disso?
Nasi  — Eu não soube o que fazer. Não a assumi, primeiramente porque eu tava muito no fundo do poço. Segundo porque vi que significaria acabar a banda. Não ia ter meio-termo. Procurei fugir disso o máximo possível. Tanto que depois ela se separa do Edgard e vai para a Espanha. E de lá, me ligava a cobrar. Durante um tempo, ela dizia que ia dividir a conta telefônica comigo, porque eu tava duro, viciado. Depois sumiu, acho que encontrou alguém lá.

JE — Isso tudo em 1995?
Nasi — Isso. Antes de ir pro Japão. Fomos pro Japão brigados. A banda tinha acabado, só voltamos para ir ao Japão. E olha só: cobrei dela, porque imagina, a gente ficava horas no telefone, chamada a cobrar da Espanha. Não dava (riso). Aí deu um imbróglio: um dia o Edgard me ligou e disse: “Quanto é que ela te deve? Acabou o assunto”. Eu falei o valor e ele só disse: “Eu pago. Não liga mais pra ela”.Liguei, pra perguntar o que ela tinha feito, daí o Edgard me ligou de novo dizendo que ia quebrar minha cara. Falei:  “vem então”…

JE — Vocês chegaram a sair no braço?
Nasi — Não, mas eu saí da banda, voltei; o Edgard saiu e  voltou: o Ira! acabou. O que aconteceu, e não deveria ter acontecido, foi a volta. O empresário da época convenceu a gente. Deveríamos ter dado um tempo, cada um ir resolver sua vida. Porque a traição maior não foi essa. Depois fiquei pensando: “pô, eu ainda fui amigo dele. Eu podia ter falado que ela era o maior amor da minha vida, ainda que eu não tivesse capacidade de assumi-la”. Porque ela fazia muito bem pro meu ego, pra minha solidão. Mesmo assim  abri mão. E eu pensei “esse cara ia abrir mão de alguma coisa? Só eu tenho que ser amigo dele? Ele não é mais meu amigo, não é amigo de ninguém, só dele”. Então quando acaba o Ira! e ninguém sabe, deveria ter parado mesmo. E só voltar por amor mesmo, ou por ter superado. O Edgard nunca superou.

JE — Ela é musa de alguma canção?
Nasi — O girassol  ele compôs sobre a situação com a Beatriz. “Eu tento me erguer às próprias custas / e caio sempre nos seus braços…” Tanto que é ele quem a canta na versão de estúdio (do disco 7, de 1996). Quando fomos selecionar as músicas para o Acústico, o produtor Rick Bonadio disse que precisava de quatro músicas para transformar em hits, no resto a gente podia fazer o que quisesse. E dentre asescolhidas  por ele estava O girassol. O Rick dizia não entender como a gente nunca tinha lançado uma canção tão boa como single. O Edgard até ficou feliz, mas aí o Rick disse que a ela tinha sido feita pra minha voz. Cara, aí o Edgard chorou, falou que não podia, que ele cantava bem e podia dar conta. Mas o Bonadio, que não sabia da história, bateu pé e a música entrou. Foi uma das coisas mais tensas desse momento final da banda.

JE — Misturou  conflitos familiares, pessoais, artísticos. Ainda há muita confusão a respeito dos verdadeiros motivos da separação.
Nasi — Já expliquei e as pessoas não prestaram atenção. Ira! Produções é uma empresa na qual os quatro músicos são sócios. É uma empresa como a que todos os artistas têm, para entrada e saída de haveres, pagando imposto. Quem controlava de fato era meu irmão e o contador William Wagner, que coincidentemente virou sócio dele depois. A gente só assinava os cheques e imposto de renda. Ingenuidade? É, e no meu caso se misturava a irmandade. E eu pleiteei coisas. (faz como se levantasse bandeiras): Auditoria! Prestação de contas! Acesso a contratos! Então a interdição visava tirar meus direitos cíveis. Com a tutela meu pai ia responder por mim, com um advogado da confiança dele falando em meu nome.

JE — Como está sua situação judicial?
Nasi — É bem complexa. Tenho dois processos: um por ter supostamente atingido moralmente meu irmão, pelo fato de ter revelado numa revista detalhes do boletim de ocorrência da briga em minha casa. Outro por supostamente ter cessado os lucros da agencia-produtora. No entendimento deles, eu deveria ter continuado a fazer shows até o final de 2008.

JE — Como se você não tivesse honrado seu lado profissional?
Nasi — Se o João Gilberto pára o show porque tá rouco, eu saio na mão com o empresário e vou continuar fazendo show? Independente de quem tem razão, acabou-se o vínculo.

JE — Em qualquer emprego seria claro isso.
Nasi — Você falou a palavra certa: emprego. Concluí que de uns tempos pra cá eu era empregado da agência-produtora. Porque ela registrou o nome como sócio majoritário. Me pagava fixo. Era subordinado. A minha vontade não prevalecia sobre a dele. Isso caracteriza vinculo empregatício. E pleiteei que a Justiça do Trabalho reconheça direitos que tenho de fundo de garantia, férias, 13º e outras coisas mais dos últimos 20 anos. Futuramente pretendo questionar a propriedade do nome Ira!, mas ainda não entrei com isso. 

JE — Por que?
Nasi — Esperei  eles entrarem também com o recurso sobre a anulação da interdição – porque é direito deles – para eu entrar com um processo de danos morais contra os que tiveram participação na minha tentativa de interdição. Que nada mais foi que uma tentativa de curatela. Isso era para acabar a empresa do jeito que eles queriam, me demitindo por justa causa, com apuração de haveres do jeito que o empresário queria.

JE — Os outros três músicos estão incluídos nessa?
Nasi — Inicialmente sim. Não vou inocentar o Gaspa, mas ele foi induzido ao erro, e com isso aprendeu que  tem que ler bem o que assina. Hoje ele tá tocando comigo. Mas não participou da interdição. Foram o Edgard e o André.

JE — E seu pai?
Nasi — Meu pai é o autor. Meu irmão é um espertinho, né? Meu pai é um aposentado e mora numa casa pequena num sítio no sul de Minas. Meu irmão pegou meu pai, um homem simples, porque achou que num caso contrário só o autor seria processado. Mas ele os outros foram mal orientado, o que não tira a culpa deles. Porque tudo isso saiu num documento público, reiterando um documento emitido por um psiquiatra. Só faltou falar que em noite de lua cheia eu virava lobisomem e ia beber sangue.

JE — O que ninguém te perguntou até agora é se você e seu irmão tinham uma relação pesada antes.
Nasi — Pode-se dizer o seguinte: acho que tinha coisas muito mal resolvidas de nossa infância, principalmente de nossa juventude recente, antes dele trabalhar com Ira!, no modo como ele tratava minha mãe. (A voz soa embargada e ele fala com lentidão). Numa maneira irônica da vida, ela  morreu de uma maneira repentina, pra dureza da consciência dele.

JE —em meio a esses conflitos?
Nasi — Estou readquirindo controle de coisas que eu tinha no início da carreira. Se hoje to falando com você aqui, é porque eu quero. Eu vou e converso com gravadora, com produtor de show, com a TV. Porque antes era: “ah, o empresário faz”. E fez! (gargalha) “Ah, o empresário registra o nome”. E registrou. A gravadora decidia quando gravávamos o disco…

JE — Mas você não concorda que o Ira! foi bastante ingênuo em não pensar na banda de forma empresarial? Porque o Ira! tinha uma postura turrona…
Nasi — Quase sindicalista! Mas quando você tem aquela idade, não acredita que vai envelhecer. Você não vai querer ser como seu pai, casar e ter que sustentar família. Quando começou o profissionalismo, a gente não pensava que bandas de rock virariam macas como Microsoft e Coca-Cola. Até porque isso é uma coisa recente. Hoje a marca é tudo. Quando a gente começou, não tinha isso. A gente ganhou dinheiro, mas também o que a gente perdeu… Nós éramos atuantes, mas chegou uma hora em que a gente deixou tudo para empresário. Quando íamos falar com a gravadora, tava tudo mastigado. Quando  comecei, ser roqueiro era um desgosto para a família. Hoje o pai dá uma guitarra pro filho. Mas eu fui pelo meu instinto. Não porque pensei que na frente tudo isso fosse mudar.

JE — Ainda tinha aquela história, roqueiro no Brasil tem cara de bandido.
Nasi —  Em contrapartida, infelizmente, hoje o roqueiro nacional tem cara de bom moço.