Cristian chegou ao inferno com 20 anos, o cabelo raspado e a missão de arrumar uma cela para morar. “Se vira porque aqui não tem lugar pra você”, disse o primeiro carcereiro que viu nos corredores do pavilhão 8. O presídio do Carandiru, na zona norte de São Paulo, desativado em 2002, foi sua casa por sete anos e meio. Ao sair, cumpriria mais sete anos e meio em regime condicional (em liberdade). Seu crime: praticar assaltos no estrelato às avessas de uma carreira que começou com roubo de motos e terminou com roubo a bancos. Cristian, atrás das grades, viu homens serem massacrados e outros perderem a cabeça com tiros de fuzil. Ao perceber que o cerco se fechava, inventou para si a figura do rapper Afro X, formou dupla com outro presidiário, Dexter, conheceu a cantora Simony e lançou um CD. Fora das grades, Cristian de Souza Augusto, 35 anos, 5 filhos, rapper, escreveu tudo o que viu no cárcere para lançar agora o livro Ex-157 – A História que a Mídia Desconhece. A reportagem o entrevistou em seu último dia de condicional, na Padaria Real, ao lado da MTV, na zona oeste da cidade.
Agência Estado — Depois de sete anos e meio no Carandiru e mais sete e meio em regime condicional, você é um homem recuperado pelo sistema?
Afro X — Sinto que foi uma grande vitória, é como se tivesse ressuscitado, e a maior lição que tiro de minha história é acreditar no sonho enquanto houver vida. Mas cadeia não recupera ninguém e a realidade é uma só: existe uma grande indústria por trás do sistema carcerário. O preso custa entre R$1,3 mil a R$1,6 mil ao Estado. Alguém está ganhando com isso, e não sou eu nem você.
AE — Quem passa por uma ‘escola do crime’ não sai mais criminoso do que era?
Afro X — Não saí um criminoso porque tive uma vontade muito grande de mudar, consegui recuperar alguns valores que, dentro da prisão, são totalmente degenerados.Há muita distorção no sistema prisional. Alguém que comete um 155 (furto) é jogada dentro de presídio cheio de PHDs.
AE — Mas o inferno de um Carandiru não é um mal necessário a um criminoso? Não é o limite da existência que faz as pessoas fazerem suas grandes escolhas?
Afro X— Se eu não tivesse visitado o inferno do Carandiru, não estaria vivo hoje. Esse período foi importantíssimo na minha vida, só que outras pessoas que não têm capacidade intelectual ou física para aguentar aquilo tudo. Chegam ao fundo do poço e não voltam. Na minha vida foi assim: conhecer a dor para conhecer o amor.
AE — Você diz que a barganha que leva ao crime começa em casa, quando um pai promete um presente ao filho para que ele tire boas notas na escola. Foi assim que tudo começou com você?
Afro X — Minha família era carente, meus pais não tinham grande instrução. Havia essa negociação, diante de alguma obrigação. Se passasse de ano, ganhava um presente.
AE — E isso criou um criminoso?
Afro X — Quando a criança cresce, vai negociar tudo, vai querer sempre algo em troca. Ao ser parado pela polícia, sem a carta de motorista, oferece uma grana. É o começo da corrupção. Isso só vai crescer.
AE — E cresceu. Sua vida no crime começou com roubo de moto.
Afro X — Meu objetivo era ganhar reconhecimento. A figura de referência na periferia é o cara que pratica o negócio ilícito. O cara está ali fazendo churrasco, usa o melhor tênis, a melhor moto, as pessoas o respeitam, é um líder. Do outro lado havia as mensagens subliminares da TV, que diz que você tem de ser um cara bem sucedido para ter chance na vida. Ela impõe um padrão de roupa, um padrão de consumo. E quem não está enquadrado neste sistema reage com revolta.
AE — E se um dos seus cinco filhos pensar como você pensou?
Afro X — Um dia desses aconteceu com meu filho de 7 anos. Levei ele pra passar um dia comigo e ele pegou um brinquedo de uma irmã pequena que tenho e colocou na mochila, para levar pra casa dele. Quando percebi, falei com ele: “Filho, o papai vai contar uma história: você sabe que o pai ficou preso. Foi porque o pai fez uma coisa muito parecida com o que você fez aqui. O pai pegou uma coisa que não era dele. Por enquanto, a gente está tentando resolver isso em família, mas lá fora você não vai ter a chance de ter essa conversa. E vai pagar pelo que fizer. Filho, pega esse brinquedo e devolve.” Ele devolveu. O crime é uma rosa que esconde espinhos.
AE — O que você viu de pior no Carandiru?
Afro X —Foi logo no dia em que cheguei na prisão. Vi uma morte bárbara, um cara esfacelado, não dava para ver se era branco ou preto. O tórax, a barriga, a cabeça, tudo estourado. Eu estava subindo pelos pavilhões para arrumar uma cela para ‘morar’. Assim que cheguei à penitenciária, tentei entrar em uma e o carcereiro disse: “Arruma um lugar por aí pra você morar porque aqui não tem.” Comecei a subir o pavilhão, andar por andar, e foi aí que vi essa cena.
AE —Você fala no livro do despreparo emocional dos policiais e dos agentes penitenciários…
Afro X — Houve uma história com um preso chamado Joy. O policial que ficava de guarda na muralha – geralmente é um policial que está de alguma forma cumprindo um castigo – urinou em uma garrafa pet de refrigerante e jogou a urina sobre o Joy, que estava lá embaixo assistindo a um jogo no campo. Joy ficou louco, começou a jogar pedra e a xingar o policial. O guarda tentando se esquivar e o Joy jogando pedra. Quando uma pedra acertou o guarda, ele engatilhou o fuzil e disparou (o tiro, segundo o livro, acerta a testa do presidiário). Foi horrível, triste.
AE — Qual era a pior parte do dia?
Afro X — Quando eu acordava. Sempre pensava que tinha de sobreviver a mais um dia. No final da tarde era prazeroso, era um dia a menos de condenação. Já na hora de dormir, era um problema. Fiquei em uma cela com 20 beliches com 60 presos. A gente ‘dormia de valete’. Um virado para cima e o outro virado para baixo.
AE — A cantora Simony, com quem você foi casado, o conheceu quando estava preso. Acha que aquele foi o momento certo?
Afro X — Ela foi a um show do 509-E (dupla que Afro X tinha com o rapper Dexter, formada no Carandiru). Adorou e foi lá que tudo aconteceu. Eu vejo que, na época, aquilo foi importante para discutir três tabus da sociedade: a relação de preto com branco, pobre com rico e preso com livre.
AE — O crime está dentro ou fora de um homem?
Afro X— O crime está do lado de fora, ninguém nasce criminoso.