Ele é autor de dois belíssimos filmes – e Pedro Bial promete um terceiro para breve, não repetindo o intervalo de quase dez anos entre Outras Histórias e agora Jorge Mautner – O Filho do Holocausto. Para muita gente, Bial é um enigma, um caso raro de esquizofrenia artística. Ele ri quando a reportagem lhe faz a observação, em entrevista no começo de janeiro. Ele estava relativamente relaxado, porque logo em seguida ia começar a loucura do Big Brother Brasil. E é isso que desconcerta muitos críticos – como o homem que faz filmes exigentes sobre figuras que pensam o Brasil (Guimarães Rosa e Mautner) pode se orgulhar de ser o sr. BBB? Para Bial, não existe divisão nem esquizofrenia. Pode até ser provocação, mas ele diz que tem o maior orgulho do “BBB”. Se os dois filmes são obras de reflexão sobre o País, o que ele tem a dizer do “Big Brother”? “Não diria que ele reflete o Brasil, mas o Brasil com certeza se reflete no programa.”

Agência Estado — Como surgiu a ideia de um filme sobre Jorge Mautner?
Pedro Bial — Foi uma decorrência direta da leitura do livro, que me impressionou muito. Desde os anos 1970, eu já conhecia o Mautner. Ia a seus shows, entrevistei ele algumas vezes. Mas quando li o livro O Filho do Holocausto, alguma coisa se produziu. Ele é filho de emigrantes que fugiram para o Brasil, verdadeiros refugiados. Dei-me conta de que a história dele não era diferente da minha. Comentei com o Heitor (D’Alincourt, codiretor), que foi da banda do Mautner muitos anos atrás, e ele me perguntou na lata: “O Mautner vai fazer 70 anos, por que a gente não faz um filme sobre ele?”.

Agência Estado —E por que Jorge Mautner é uma figura tão importante?
Pedro Bial — Algumas gravações de canções dele representaram a conquista de gerações, assim no plural. Quando Caetano Veloso gravou Vampiro no disco Cinema Transcendental, foi um choque para muita gente descobrir que aquela maravilha era do Mautner. Minha geração experimentou esse choque nos anos 1970. A gente já conhecia o Maracatu Atômico, na versão do Gil, e Lágrimas Negras com a Gal, mas o Vampiro… Depois, nos 90, houve nova explosão com a releitura do Maracatu pelo Chico Science. Mautner estava tão adiante da época dele que somente hoje a juventude consegue encarar a música dele com naturalidade, sem achar que o cara é louco. Ele era visionário, isso sim.

Agência Estado —Em que sentido?
Pedro Bial —  Bicho, o Mautner foi o cara que entendeu o rock and roll antes do Elvis Presley, acha pouco? E tem outro aspecto que considero muito interessante. Ele vem, na verdade foi o precursor de uma geração que começou alternativa e hoje está no poder. E o Mautner em nenhum momento se corrompeu. Continua o artista maravilhoso e o homem que ninguém consegue capturar, porque permanece rebelde, à margem das modas.

Agência Estado — O filme difere de outros documentários musicais por ter o próprio Mautner recitando seus textos e também pelo elaborado trabalho de som. Como foi isso?
Pedro Bial — Foi sempre o conceito. Houve planejamento, mas as gravações de entrevistas e músicas foram feitas durante quatro dias. Alugamos o melhor estúdio, os melhores técnicos e músicos. A gente não tinha muito dinheiro, mas nunca foi nossa ideia transigir. Tínhamos sempre muito claro – o Mautner merece o melhor.

Agência Estado — O encontro dele com a filha é genial. Concorda que é a melhor coisa de O Filho do Holocausto?
Pedro Bial — Totalmente. A Amora fez sensação na TV dirigindo a novela que marcou época, Avenida Brasil. Não a conhecia suficientemente, mas fomos nos aproximando, ela foi contando coisas. Aquele encontro entre pai e filha é uma coisa de arrepiar. Sou pai e percebo todas as implicações. A Amora não vai ficar zangada se eu contar, mas ela tomou umas para descontrair e ficar à vontade. Deu no que deu, aquela coisa sincera, visceral.

Agência Estado — O filme tem preocupação especial com a montagem.
Pedro Bial — O filme foi montado por uma italiana Leyda Nápoles Viant, que conheci no Big Brother. Ela desembarcou no Brasil sem conhecer nada do Mautner e isso foi sensacional para nós. Queríamos informar sem didatismo e ela tinha esse olhar virgem. Foi a nossa primeira espectadora, descobrindo o Mautner pelo filme. A montagem, como o som, é muito rica e não digo isso porque sou um dos diretores.

Agência Estado —Você me disse uma vez que não se identifica necessariamente com as visões do Mautner nem com as do Guimarães Rosa, mas os respeita. E o “Big Brother”?
Pedro Bial — Acho o formato sensacional e, sim, tem o marombado, a gostosa. Tem gente que reclama, mas o formato do programa não exige pessoas densas. Algumas até são, mas o importante é que tenham imaginação. Tem gente que decepciona, outros que surpreendem. Não é o Mautner, não é o Rosa, mas o Brasil se reflete no BBB e esse é um dos vetores do sucesso. Quem não aceita isso, não gosta do país em que vive.

SERVIÇO
JORGE MAUTNER – O FILHO DO HOLOCAUSTO
Direção: Pedro Bial e Heitor D’Alincourt.
Gênero: Documentário (Brasil, 2013, 93 min.). Livre.


DOCUMENTÁRIO SITUA MAUTNER EM CONTEXTO HISTÓRICO E PESSOAL

Por Luiz Zanin Oricchio
Agência Estado

O documentário Jorge Mautner – O Filho do Holocausto já vem sendo testado em alguns festivais. Onde se deu melhor foi em Gramado no ano passado, no qual recebeu os prêmios de montagem, fotografia e roteiro. Agora, segue para a prova de fogo dos documentários, que é o circuito comercial. Tem tudo para se dar bem, guardadas as proporções de sucesso compatíveis com um documentário, mesmo se musical, o segmento que funciona melhor no Brasil.

O retrato de Mautner, pintado por Pedro Bial e Heitor D’Allincourt, é tanto musical como cultural. O que é justo, dada a presença do personagem na vida de cultura do País que, em dada época, se confundia de maneira indissociável com a música e a questão política. Para simplificar, num primeiro momento pode-se dizer que Mautner foi, com colegas talvez mais famosos que ele, como Caetano, Gil, Mutantes e outros.

O documentário é hábil em conduzir a biografia do personagem, como se esta tivesse de desaguar, de forma inevitável, nessa figura emblemática dos anos 60 e 70. Filho de família judia fugida do nazismo (daí o subtítulo de “Filho do Holocausto”), com relações familiares um tanto complicadas no Brasil, fazendo com que a vida do menino se dividisse entre duas cidades (Rio e São Paulo) e dois pais (o natural e um padrasto) que, em dado momento, convivem. Enfim, dá-se contexto tanto histórico como pessoal a este Jorge Mautner que seria parte importante do movimento contracultural brasileiro. E este talvez seja outro trunfo do filme, comercialmente falando. Se podemos constatar que o engajamento político radical dos anos 60 caiu de moda como a calça boca de sino, deve-se reconhecer que a forma de contestação que o substituiu (já nos anos 70) continua em alta. Ainda soletra com clareza a sua poesia e é ouvida pela juventude contemporânea, uma vez que a rebeldia é uma espécie de esperanto do universo teen.


O documentário é hábil em conduzir a biografia de Mautner, filho de judeus fugidos do nazismo

Daí a razão de sentirmos Caetano e Gil muito próximos, como se não tivessem atravessado os anos. E, de fato, não envelheceram; ou envelheceram bem, o que dá na mesma. São iguais aos jovens, apesar das cãs e óculos de leitura. Falam com eles no mesmo nível, às vezes com as mesmas gírias, e não como se recitassem uma sabedoria que só vem com a acumulação de décadas, rugas e cabelos brancos e que, no fundo, não serve senão aos velhos, já que os jovens preferem errar por conta própria. A rebeldia se situa mais na esfera da dúvida e da invenção do que na das certezas magistrais.

Se isso acontece com Caetano e Gil, acontece também com Mautner, que é índio da mesma tribo. E tanto são que estão juntos no único filme feito por Mautner, O Demiurgo, rodado em Londres em 1970, com sobras de negativo de Queimada, o clássico de Gillo Pontecorvo, segundo informa Pedro Bial. Vemos alguns trechos dessa obra underground, comentada na atualidade por seus atores, então jovens exilados em Londres. Todos cabeludos, todos malucos e alegres, praticando uma reviravolta de costumes que não se acomodava muito ao clima austero e verde-oliva do Brasil.

Mas há Mautner. E sua trajetória pessoal na volta ao Brasil, na tentativa de levar uma vida “normal”, sem renunciar ao desbunde. A parte mais engraçada – e também reveladora – é o encontro de Jorge com sua filha Amora, hoje ocupando alto cargo na Rede Globo, diretora de novelas como Avenida Brasil. Rola certa cobrança: “Você sabe que esse nome me trouxe problemas, não é?”. Claro, os pais descolados podem achar lindo chamar a filhota de Amora, que não é a fruta, mas o feminino de Amor, mas, como se sabe, crianças são implacáveis com a diferença e Amora sofreu na escola. Ela se queixa de que o pai andava nu pela casa e ia buscá-la de sunga na porta do colégio. Tudo isso é engraçado, nota-se que está bem assimilado (à custa de muita psicanálise, admite a moça), mas mostra também como não é fácil ser filho de maluco-beleza. Uma geração ousa tudo, testa limites e vai até a beira do abismo; a geração seguinte dá um passo atrás e fica mais careta. É assim mesmo.

O fato é que Mautner foi ponta de lança de uma geração que empurrou as coisas adiante. Forçou limites e pagou seu preço por isso. Sempre se paga. Dessa fricção, anda-se um pouco mais à frente. Mautner, como outros, é um desbravador de caminhos.