Primeira escola de samba de Curitiba teve de enfrentar o racismo para desfilar na XV

A paixão pelo ritmo levou João Carlos de Freitas, autor do livro “Colorado: A Primeira Escola de Samba de Curitiba”, a documentar sobre o surgimento do gênero na Capital, que teve dificuldades relacionadas à segregação racial

Redação Bem Paraná
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(Luísa Mainardes)

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João Carlos Freitas e seu livro sobre a Colorado: “Quando o samba dos pretos pisou na XV” (Luísa Mainardes)

Curitiba está longe de integrar a lista de capitais brasileiras onde a população mais ouve samba. Apesar disso, a cidade é um celeiro de bons sambistas. João Carlos de Freitas, autor do livro Colorado: A Primeira Escola de Samba de Curitiba, acompanhou de perto como o “samba raiz” se desenvolveu na Capital.

Devido às suas origens afro-brasileiras, o samba foi discriminado nos séculos passados. Relatos históricos contam que a elite branca racista proibia as festas organizadas por pessoas negras. Em Curitiba, a situação não foi diferente. Mesmo com tanto talento, os ritmistas da Colorado demoraram para serem reconhecidos na cidade.

O racismo imposto pela sociedade criou uma barreira entre os negros e os brancos. Em Curitiba, essa delimitação não existia no sentido figurado. “Os negros eram impedidos de passar da linha do trem, nas próximidades onde hoje é a rodoviária. A linha dividia o espaço de alegria, música e festa. Quando eles [os negros] passavam da linha do trem, os policiais os agrediam”, conta Freitas.

O fundador da Colorado, Ismael Carneiro, conhecido como Maé da Cuíca, foi quem corajosamente rompeu a barreira em 1946, quando incentivou os ritmistas a seguirem com os desfiles da Vila Tassi até o Centro. Ao passarem pela linha do trem, Freitas conta que os “policiais olharam com cara feia”, mas permitiram com que eles seguissem. À medida que caminhavam pelas ruas de Curitiba, pessoas se juntavam para acompanhá-los.

Quando os sambistas chegaram na Rua XV, próximo de uma confeitaria tradicional, as pessoas que estavam em um bar saíram para ver o desfile. O proprietário do estabelecimento pediu para que os músicos tocassem dentro do bar, em troca, receberam lanches e cervejas. Os batuqueiros decidiram aceitar o convite, mas com receio. “Foi a primeira vez que o samba dos pretos pisou no Centro e foi reconhecido”, afirma Freitas. Foi o embrião da primeira escola de samba de Curitiba.

Embora a escola tivesse poucos recursos, o talento dos ritmistas fazia com que a batida da Colorado fosse reconhecida em qualquer lugar. De acordo com Freitas, nos anos 1930, em Curitiba, alguns blocos desfilavam cantando as marchas do Rio de Janeiro. “Tinha características europeias, o ritmo era mais lento”, conta.

O diferencial da Colorado era a batucada rápida, nada tinha a ver com a do Rio de Janeiro. Essa característica foi passada de um dos integrantes, conhecido como Índio, que tocava surdo em velocidade rápida. Além disso, a Colorado foi uma das primeiras a se apresentar com mulheres, que eram proibidas de desfilar na época. Grandes figuras da música como Elis Regina e Cartola deram dez à Colorado quando foram jurados em Curitiba (segundo o escritor), mas a escola foi campeã poucas vezes (1964, 1972, 1974 e 1997), devido à falta de investimentos.

A Colorado resistiu por décadas com sua irreverência, mas chegou ao fim em 2002.

Paixão pelo samba veio durante partida de futebol
João Carlos de Freitas, 73 anos, é advogado aposentado e cultiva, durante toda a sua trajetória de vida, duas paixões: o samba e os livros. O samba encontrou Freitas nos idos de 1958, na Vila Guaíra, em Curitiba, há exatos 48 anos após o ritmo tornar-se gênero musical. Com memória afetiva, ele lembra os detalhes do inesquecível dia em que viu uma roda de samba pela primeira vez, durante uma partida entre os times de futebol Triunfo Esporte Clube e Café do Paraná.

O time Café era composto por trabalhadores da rede Café do Paraná, que levavam aos torneios um caminhão com torcedores. As pessoas não apenas iam para torcer, mas, também, para fazer samba. Elas chegavam aos jogos portando, em suas mãos, surdos, pandeiros, tamborins, cuícas e até “frigideira de ouro”, que também servia como instrumento.

Freitas ficou maravilhado a primeira vez que viu uma roda de sambistas. O ritmo do não era novidade para ele, pois sempre ouvia músicas do gênero no rádio do pai. A Vila Guaíra, lugar onde viveu na infância, era um dos poucos bairros de Curitiba onde moravam famílias de pessoas negras. Freitas encontrava nas casas dos vizinhos uma oportunidade para participar das rodas de samba.

Com a paixão pelo samba correndo pelas veias, ele decidiu participar da Colorado, mas foi reprovado por falta de técnica para tocar os instrumentos. Não satisfeito, Freitas disse para Maé da Cuíca que voltaria para tocar junto com ele.

Freitas não apenas tocou com seu ídolo Maé, como também escreveu o livro sobre a história da Colorado, que foi entregue como monografia da pós-graduação em Fundamentos da Música Popular Brasileira. Para escrever o livro, Freitas uniu suas experiências com a escola com pesquisas, especificamente em arquivos de matérias de jornais que estão disponíveis na Biblioteca Pública do Paraná.

Escritor aponta os inimigos do Carnaval de Curitiba
Para além do encanto pelo samba, uma das razões que o motivou a escrever sobre a história do Colorado foi a revolta com o racismo. Uma fotopintura familiar que fica no centro de sua biblioteca particular, na qual ele e sua mãe tiveram a pele branqueada, evidencia que desde muito cedo Freitas teve de lidar com o racismo.

Atualmente com mais de 2 mil livros em sua biblioteca, o gosto pela leitura faz jus a um pedido especial de seu pai, que o incentivou a estudar.

Ao receber seu primeiro exemplar, que fora comprado com o dinheiro da venda de galinhas que a família tinha no quintal de casa, escutou seu pai dizer: “Olha, veja bem, a minha caneta foi enxada. A sua será mesmo uma caneta, e os livros serão os companheiros”.

O interesse pelos estudos fez com que Freitas se destacasse ainda na infância, ganhando premiações em competições voltadas à educação. Ele sempre dava um jeito de conciliar a vida acadêmica com as rodas de samba.

O advogado aposentado ainda é engajado com o Carnaval curitibano, mas lamenta a falta de investimentos neste setor.

O Carnaval na Capital tem crescido de forma paulatina, isso é possível perceber até mesmo com as movimentações de blocos no período Pré-Carnaval.

Contudo, na opinião de Freitas, ainda há algumas questões que colaboram com a crença de que o Carnaval de Curitiba não é bom. “São três grandes inimigos: a falta de investimentos; a segregação entre as pessoas que gostam, que geralmente são de bairros periféricos, e parte da elite que prefere cultura erudita e detesta Carnaval; e o tempo, porque quase sempre chove”.