Tatiana Leskova merece um filme sobre sua vida. Não apenas pela sua contribuição artística ao balé, desde os anos 30, como bailarina, professora e coreógrafa. Mas também porque teve uma vida cheia de peculiaridades que vão desde antes de seu nascimento, em 6 de dezembro de 1922. O roteiro pode ser esse abaixo, é só filmar.
O filme poderia começar com Tatiana Leskova recebendo a visita de uma fã. Essa fã poderia ser, por exemplo, a curitibana Elisa Vellozo, que recortava imagens da bailarina da revista O Cruzeiro e as colecionava, nos anos 50. Elisa está de porte de dois livros sobre a bailarina – Tatiana Leskova: Uma Bailarina Solta pelo Mundo, de Suzana Braga, e Ballet Fotográfico, editado por Joel Gehlen. Atrás de um autógrafo tardio, ela sai de Curitiba, vai ao Rio de Janeiro, onde Leskova mora, e a encontra em casa. Elisa lembra de um encontro casual das duas em 1989, em São Petesburgo (na época, Leningrado, União Soviética), quando a fã vibrou ao descobrir quem compartilhava o elevador com ela naquele momento. Naquele momento, faltou pedir o autógrafo. Naquele momento, não se faziam selfies…
Corta para União Soviética, 1989. Na ocasião do encontro, Tatiana Leskova estava lá para prestigiar um festival de balé. Contudo, o sobrenome Leskova e o passaporte estrangeiro despertam a atenção das autoridades soviéticas, que a retêm para um interrogatório. Tudo corre de forma educada, mas isso atrapalha os planos da bailarina no festival.
Corta para as duas no apartamento de Tatiana Leskova, em Ipanema. Entre um chá e outro, Elisa diz que sempre quis ser bailarina. Ouve a pergunta: Por que não se tornou?. A fã afirma que a família jamais permitiria que ela saísse por aí dançando de perna de fora. Naquele tempo era assim mesmo. Leskova dá uma risadinha da mentalidade da família brasileira nos anos 50. A bailarina sempre esteve à frente de seu tempo. Mesmo hoje, tem perfil em redes sociais e assiste ao noticiário. Inclusive em francês. E as duas começam a conversar sobre a vida de Leskova.
Corta para Rússia, 1917. Yuri Andreievitch Leskov era um diplomata russo. Estava em missão na Bulgária quando a revolução estoura. Ele, a mulher, Helena Medem, e os familiares que ficaram na Rússia têm que fugir para não serem mortos pela população. A fuga não é fácil. As rotas do casal, da mãe de Helena, Nina, e das irmãs são diferentes. Bulgária, Turquia, Noruega e Inglaterra servem de escalas intermediárias até o reencontro em Paris. Yuri, agora Georges Leskov, tem que recomeçar a vida e vira taxista. Helena, a mãe e as irmãs se envolvem com desfiles de moda e costura. Na França, o casal ganha uma filha, Tatiana.
Corta para as duas. Leskova conta histórias da família. Ela era bisneta do escritor Nikolai Leskov. E relata a Elisa vários pormenores da odisseia da família pela Europa naqueles tempos. Fala também de pormenores das famílias dos Czares.
Corta para Paris. Leskova, já com 8 anos, começa no balé. Um médico diz que a atividade é boa para a menina, que ainda por cima acabara de perder a mãe. Deixar Tatiana no balé é bom também para o seu Georges nas horas de trabalho, já que eles estão morando sozinhos. Mas ele não imagina onde Tatiana chegaria. A menina tem suas primeiras aulas de balé com a bailarina Lubov Egorova, também uma russa exilada. Cresce, aparece e se destaca. Aos 13 anos, já faz parte da Opéra Comique de Paris. Aos 16, está no Original Ballet Russe do Coronel de Basil, em Londres. Aos 17 anos, já faz solos de balé perante cortes reais. Com o tempo, sai pelo mundo em turnês.
Corta para as duas. Foi numa dessas turnês, diz Leskova a Elisa, que a bailarina conheceu o que viria a ser o grande amor de sua vida, o brasileiro Luiz Honold Reis. Foi nos 40, quando a companhia resolveu fugir da Segunda Guerra Mundial e veio para a América do Sul.
Corta para Buenos Aires. A capital argentina é o palco do primeiro encontro entre Tatiana e Luiz. Em 1944, já no Rio de Janeiro, a bailarina abandona o posto de destaque no Original Ballet Russe para ficar com seu grande amor. Tatiana larga a trupe, mas não o balé. Restabelece-se como bailarina, primeiro no Golden Room do Copacabana Palace, depois como primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio, companhia clássica mais antiga do Brasil. Do Rio de Janeiro não sai mais, a não ser para se apresentar mundo afora. Diz um documentário da NatGeo que até mesmo alguns calculistas nazistas que viviam no Rio de Janeiro em 1947 se renderam à exuberância de uma certa bailarina. Imagens de jornal indicam que essa bailarina é Tatiana Leskova. Ela nunca deu importância a isso. Sempre faz seu papel com correção e competência. Mesmo diante de administrações prepotentes do Municipal ou de um corpo de baile enfurecido. Foi assim até encerrar a carreira de bailarina e assim seria em outros caminhos, como o de professora de balé.
Corta para as duas. Elisa pergunta se, como viajou mundo afora, Tatiana conheceu nomes famosos da dança, como o russo Mikhail Barishnikov. Leskova diz que sim e mostra fotos com ele. E o músico Igor Stravinski? Leskova sempre foi amiga dele e anualmente viaja para Veneza (Itália), para visitar seu túmulo. Elisa pergunta sobre outro bailarino, Rudolf Nureyev. Ele era impossível, né? Impossível, responde Leskova de um jeito que é difícil não achar graça.
Corta para o Rio de Janeiro dos anos 60. Leskova transforma o Teatro Municipal num verdadeiro grupo profissional. E, como professora, abre uma escola de dança em Copacabana. Por lá passaram milhares de alunos. Dona Tânia, como se tornou conhecida, podia parecer doce, mas não era mole. A aluna está com uns gramas a mais? Minha filha, você engordou!, dizia. Dona Tânia possuía um grau de exigência elevado. Bailarina, afinal, tem que ser perfeita. Não dá para ser mole. A escola forma milhares de bailarinos e bailarinas até fechar as portas, em 2002.
Corta para as duas. O amor pelo balé fez com que Leskova juntasse uma respeitável biblioteca e videoteca de espetáculos. E ela mostra tudo a Elisa, que fica admirando. Só do balé Giselle, de Adolphe Adam, há seis versões diferentes. O número de DVDs é incerto, mas está na da casa das muitas centenas.
Corta para os tempos mais recentes. O conhecimento de balé fez com que Leskova se tornasse referência numa terceira área da dança, a de coreógrafa. Muitas coreografias antigas se perderam ao longo dos tempos. Dona Tânia, porém, se lembra de todas elas e consegue remontá-las. Companhias da Holanda, da Austrália, da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, entre outros países, a procuram para isso até hoje.
Tudo isso aconteceu de verdade. Agora, no clímax do filme, viria algo que não aconteceu. Ainda.
Leskova é chamada, de surpresa, para ir ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o lugar em em que ela mais dançou na vida. Ao chegar lá, descobre que ela mesma será homenageada em vida pelos anos dedicados ao balé, sob todas as formas. O final desse filme remete ao trecho final que envolve o cineasta George Melier (Ben Kingsley) no filme A Invenção de Hugo Cabret, ou ao grand finale de O Amor Não Tira Férias em relação ao roteirista de cinema interpretado por Eli Wallach. Elisa está na plateia, junto a centenas de pessoas do meio artístico. Na homenagem, Leskova repete uma frase própria. Os russos não me consideram russa. Os franceses não me consideram francesa. E os brasileiros não me consideram brasileira. Então eu digo que sou não russa, ou francesa, ou brasileira, mas uma bailarina solta no mundo. Se russos e franceses pensam assim, problema deles. O brasileiro ao menos reconhece o talento múltiplo da bailarina.