Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema – a Bíblia dos cinéfilos -, retém a definição que o próprio diretor Jim Jarmusch deu de seu longa Stranger Than Paradise, premiado no Festival de Cannes de 1984. Era o ano de Paris, Texas, de Wim Wenders, é bom lembrar, mas Wenders já era um autor conhecido quando o jovem Jarmusch chegou com seu tom insólito e virou a revelação do evento, do qual saiu vencedor da Caméra d’Or, prêmio que Cannes destina ao melhor filme de diretor estreante. Na verdade, Jarmusch estreara em 1980, com Permanent Vacation, mas foi quatro anos depois que estourou na Croisette.
Falando de Estranhos no Paraíso – como seu filme se chama no Brasil -, Tulard lembra que Jarmusch lhe aplicou uma definição original como o próprio trabalho. Qualificou-o de ‘humor negro, quase neo-realista, no estilo imaginativo de um diretor da Europa Central obcecado por Ozu’. Pode parecer uma piada, mas Jarmusch, rapidamente, não apenas definia o estilo de seu filme como fazia uma síntese das referências culturais que o animavam. E tudo isso sendo um cineasta norte-americano de Ohio, e jovem apesar de seus cabelos brancos – nasceu em 1953, portanto, tinha 31 anos. Desde então, Jarmusch tornou-se um regular – um habitué – da Croisette. Voltou na seleção oficial com Mystery Train e Dead Man. Este ano foi homenageado na Quinzena dos Realizadores.
A originalidade do trabalho de Jim Jarmusch, baseada na descontinuidade narrativa e na desconstrução de gêneros tradicionais, tudo isso num estilo despojado – minimalista – que ele absorveu mais de Yasujiro Ozu do que de Robert Bresson, talvez escape um pouco, vendo cada um de seus filmes com os intervalos de tempo com que ele consegue concluí-los. Mas agora você dispõe, graças à Magnus Opus, da possibilidade de assistir de uma vez só a três filmes do diretor, o que permite uma avaliação em bloco de seu trabalho: Permanent Vacation, Estranhos no Paraíso e Dead Man. O último é do tempo – 1995 – em que Johnny Depp já era cult, mas antecede a vários anos a trilogia Piratas do Caribe, que o transformou num dos astros mais rentáveis de Hollywood. John Lurie era o ator fetiche dos primeiros filmes de Jarmusch. Aparece em Permanent e Estranhos. No primeiro, ele é um rebelde sem causa apaixonado por Chet Baker. Não estuda, não trabalha e leva uma vida errante, antecipando o que será uma característica dos filmes de Jarmusch
Num certo sentido, são road movies sem movimento, e tristes, nos quais nada é tudo. Em Permanent, o herói vai daqui para lá, e vice-versa, conhecendo e conversando – quase sempre monossilabicamente – com gente como ele. Não há propriamente uma história, mas um clima, o da decadência pós-punk, que Jarmusch reproduz com perfeição. Em Estranhos no Paraíso, John Lurie lidera trio que vem da Hungria, disposto a ‘fazer’ a América. Como road movie, é meio devagar, mas como crítica ao sonho americano, visto pelo olhar de um cineasta imaginativo da Europa Central é muito divertido e inteligente. Em Dead Man, pistoleiro ferido percorre o fantasmagórico Oeste de 1875, sendo ajudado por um mestiço índio que pensa que ele é o mítico poeta William Blake. Jarmusch, impregnado de pós-modernidade, faz a revisão do western num filme muito divertido (embora não seja comédia).