Pace, sprint final, “longão”. Muitos são os termos dentro do “mundo da corrida”. Mas, em Curitiba, é a inclusão que está revolucionando a vida de muitos corredores. Sai a preocupação com o tempo da corrida, entra o zelo pelo próximo e vontade de terminar a prova juntos. Esse é o caso da iniciativa Radar DV, que une paratletas cegos ou com baixa visão a corredores guias.
Há algum tempo, a corrida de rua ganhou fama entre os brasileiros. Dados da plataforma Strava, em 2024, mostraram que o Brasil é o segundo país com mais corredores, totalizando 19 milhões de atletas. No ano passado, aliás, o esporte foi o mais praticado em todo o mundo. Entre os motivos, claro, está o fato de que a corrida é democrática e qualquer um pode começar a praticar.
Sabendo disso, um grupo de pessoas em Curitiba se reuniu para auxiliar pessoas com deficiência visual nas corridas. Assim, o Radar DV, hoje, é uma associação que treina e une esses paratletas aos corredores guias. Sem fins lucrativos, os guias e a professora de Educação Física que acompanha os treinos são voluntários.
No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual. Na capital paranaense, são mais de 40 mil, entre pessoas cegas e com baixa visão. Para essas pessoas, por exemplo, é a presença de um corredor guia permite que o paratleta participe das provas de rua.
Como surgiu e como funciona o Radar DV em Curitiba?
Preparado para fazer o seu melhor tempo na corrida, Eugênio Rotondo foi surpreendido por um pedido: “Pessoal, um dos atletas guias não conseguiu vir para a prova. Algum corredor se voluntaria para acompanhar um paratleta?”. No dia, outro corredor se voluntariou antes, mas ali, o interesse pela “guiagem” cresceu no coração de Eugênio. Depois de fazer um curso sobre atletas guias, ele e outros amigos se reuniram e criaram o Radar DV em 2015.
O Radar DV surgiu para tirar pessoas com deficiência visual de casa e fazer a integração delas com outras pessoas e, claro, com o esporte. Por meio da comunidade, muitas pessoas cegas ou com baixa visão têm a oportunidade de treinar e participar de corridas de rua com atletas guias.
Hoje, os treinos acontecem todo sábado de manhã, na Escola Polivalente, no Boqueirão. Os diretores do projeto, além da corrida, incentivam a independência desses paratletas na vida. Por isso, o ponto de encontro é o Terminal do Carmo e, depois, todos são levados de carona para a escola.
“A gente incentiva a pessoa com deficiência visual a sair de casa, a ir até o ponto de ônibus e até algum terminal. Queríamos, na verdade, a independência, a autonomia deles. Para isso, é necessário coragem. É uma aventura você sair de casa com as calçadas sem condição, sem acessibilidade, mas eles são corajosos e toparam fazer isso. O nosso treinamento começa bem antes de chegarmos aqui”, conta Eugênio, um dos fundadores e atleta guia do Radar DV em Curitiba.
Nos treinamentos, os atletas guias e paratletas passam por uma sequência de alongamentos e repetições para que eles consigam fazer os movimentos juntos. O que une os atletas é uma faixa, que os dois seguram e fazem o mesmo movimento com o braço.
Na hora de separar as duplas, é importante que o tempo e a velocidade na corrida (o pace) sejam parecidos. Por isso, muito do treinamento é o exercício de confiar no outro, seja pelo movimento em conjunto, ou pelos “comandos” falados. Por exemplo, quando há algum “obstáculo”, ou aumento do nível da pista, o atleta guia avisa para o paratleta também.
Para além da deficiência visual, um desafio social
Depois de 12 anos funcionando “apenas” como um projeto, o Radar DV foi aceito como associação em Curitiba. O passo é muito importante, porque, além do auxílio no esporte, a comunidade enfrenta desafios sociais também.
Bernardo é um dos paratletas do Radar DV. Nascido na Angola, ele participou da Guerra Civil no país e foi um verdadeiro sobrevivente. Foi na guerra que ele perdeu a visão, além de parte da audição e parte de um braço. Chegando no Brasil, ele conheceu a associação e, hoje, é um dos grandes paratletas lá. “Amanhã ele vai fazer os 21km. É o nosso atleta mais rápido, pouquíssimos de nós conseguem acompanhar ele, é um ritmo muito forte”, conta Eugênio.
Lu, por outro lado, é enfermeira e trabalhou na linha de frente na pandemia da Covid-19. A perda de visão foi uma das sequelas que a covid deixou nela, mas, hoje, ela está firme e forte no projeto, sempre correndo e se superando.
Mesmo com a história de superação, a verdade é que muitos dos paratletas enfrentam dificuldades em relação ao dinheiro e até alimentação. Eugênio conta que alguns chegam no treino sem nem mesmo tomar um café da manhã, porque não têm comida em casa. Além disso, roupas e uniformes são desafios para a associação também. Por isso, o Radar DV procura patrocínios em Curitiba.
Para ajudar o Radar DV, é possível falar com eles por meio do Instagram @radardvcuritiba. Para participar, seja como paratleta ou como atleta guia, também é necessário entrar em contato pelo Instagram e pedir para fazer parte dos grupos de Whatsapp, onde são dadas todas as informações.
“Eu tenho mais prazer hoje conduzindo numa prova, por exemplo, do que correndo sozinho. Antes o meu objetivo era pessoal, de fazer tempo, de conquistar alguma medalha, e agora não. No entanto, hoje meu objetivo é trazer pessoas para o projeto e a gente concluir as provas juntos. É uma festa quando vamos juntos”, finaliza Eugênio. Assim, para além de tempo e velocidade, o projeto é uma oportunidade de ‘correr’ por um mundo com mais inclusão. É a oportunidade de afirmar: a corrida é para todo mundo.