
Curitiba está de luto. No penúltimo sábado (30 de maio) faleceu Clésius Marcus Real de Aquino e se incendiou uma biblioteca. Em verdade, uma biblioteca de Alexandria. Proprietário da icônica Raridade Discos, fundada em 1989 na capital paranaense, Clésius tinha 74 anos e morreu de complicações renais e respiratórias após uma cirurgia.
Embora o texto comece por sua morte, o objetivo aqui é outro: exaltar e recordar sua vida. Uma vida como aquelas que a gente vê no cinema, dizem seus filhos. Mas não em qualquer cinema e sim num Cinema Paradiso.
“Recordo do encanto em suas palavras enquanto narrava, entusiasmado, sua primeira visita ao cinema, algo que o marcou tanto a ponto de tê-lo tornado, anos mais tarde, operador cinematográfico, trabalho do qual se orgulhava e que o permitia constantemente se comparar ao protagonista de um de seus filmes favoritos”, escreve sua filha, Noelle.
Clésius cresceu numa família grande (tinha oito irmãos) e também teve, depois, uma família grande, com seis filhos (Daphne, Clésius Filho, Noelle, Alyssa, Alisson e Ellen) e seis netos (Ewan, Francisco, Flavia, Olívia, Alice e Miguel).
Durante sua juventude, contudo, o irmão mais novo faleceu e, em seguida, seu pai também se foi. Na prática, teve de assumir logo cedo o papel paterno na família e ajudou a criar os irmãos.
Com o cinema, descobriu não só a paixão pelos filmes em si, mas também pela música – chegou a ser o maior colecionador de trilhas sonoras da América Latina e tinha uma coleção com mais de cinco mil vinis.
“Ele era muito observador. Se comentava um ator, ele trazia a biografia dele, gravava um disco com a trilha sonora do filme que eu assisti”, recorda Alyssa. “A leitura também. Ele lia vários livros ao mesmo tempo, não sei como conseguia. Quando a gente estava lendo algum livro que ele havia emprestado, se a gente demorava para ler ele ficava indignado. Ele lia uns três (livros) por semana”, conta Ellen.
E como fica a Raridade Discos?
Em 1989, após um período vivendo em Santos (SP), Clésius e sua família se mudaram para Curitiba, onde ele inaugurou a Raridade Discos. Ficou conhecido por conseguir fornecer discos difíceis de se conseguir numa época em que ainda não havia e-bay, Amazon, AliExpress ou coisa parecida, inclusive atravessando oceanos atrás de raridades para enriquecer sua coleção ou mesmo para trazer aos seus clientes.
Entre idas e vindas, inclusive com algumas mudanças de nome, a Raridade Discos permaneceu até 2015 com loja física em Curitiba. Depois, permanece ativa no mundo virtual, por meio de sites como a Estante Virtual, trabalhando com o comércio de livros. “Mas fisicamente não existe no momento. Quem sabe a gente faça de volta [uma loja física]… Todo mundo na família teve, sempre procuramos dar continuidade”, diz Alyssa.
Um cidadão do mundo
Numa época em que a globalização ainda engatinhava, Clésius foi o que se poderia definir como um ‘cidadão do mundo’, um aventureiro em essência. Na primeira vez em que saiu de casa, por exemplo, foi acompanhado do irmão Murilo para a rodoviária da cidade de Araraquara, onde também nasceu. Antes de viajar, contudo, faltava a resposta a uma pergunta fundamental: para onde iriam?
“Eles fecharam o olho e apontaram em direção aos guichês. Deu Rio de Janeiro e assim eles foram pro Rio”, relata Alyssa. “Ele foi pra São Paulo capital, Amazonas, Rio Grande do Sul, quase toda a América Latina,, viajou de ônibus pro Chile, viu o ídolo dele [o compositor Ennio Morricone] duas vezes ao vivo. Ele adorava falar da coleção dele de Beatles, das fotografias que fazia pelo mundo. Viajou bastante, trazia discos importados, porque era uma época em que não se comprava nada pela internet.”
Aos filhos, também ensinou o gosto pelo mundo. Como a família era grande, comprou um Galaxie para que todos pudessem participar das viagens, nas quais sempre estava acompanhado de uma câmera fotográfica – além da literatura, da música e da família, a fotografia também era outra paixão de Clésius, que na verdade era um apaixonado pela vida, essencialmente.
“Ele é uma pessoa que eu tenho inveja por ter conseguido aproveitar a vida tão bem. Ele dizia para a gente: ‘Não me arrependo de nada, eu aproveitei a vida, espero que vocês consigam’. Ele dizia que tinha pena da gente pegar uma época tão ruim, que queria que a gente tivesse as mesmas oportunidades que ele”, diz Ellen.