“Da lama ao caos, do caos a lama, um homem roubado nunca se engana”. Você já ouviu estes versos, não é mesmo? E qual a ligação deles com o atual momento sócio-político do país? Você pode até me questionar acerca da validade dessa suposição, mas se puxar pela memória, vai se deparar com os episódios de Brumadinho e das chuvas no Rio, assim como os atos de violência que tomaram conta de determinados locais no Brasil, além de toda a polarização política. Agora faz sentido? Pois é. Este é o foco (e a necessidade) de se relembrar os 25 anos do lançamento do primeiro trabalho de Chico Science com a Nação Zumbi, “Da Lama Ao Caos”, um dos mais importantes registros musicais de todos os tempos, lançado em 09 de abril de 1994.

Depois do estouro do rock brasileiro, entre os anos de 1982 e 1986, os grupos musicais acabaram entrando em um hiato criativo, dos quais muitos não se recuperaram até hoje. Óbvio, há algumas exceções no meio do caminho (Titãs com Ô Blésq Blom e Legião Urbana com O Descobrimento do Brasil, são dois deles), mas até meados de 1994, a música jovem feita no país perdeu espaço para outros gêneros, como a lambada, o sertanejo e o pop/rock internacional. Tudo isso em meio à redemocratização do Brasil e a crise ocasionada pelo governo de Fernando Collor.

Crédito: Sinister Salad Musikal's Weblog

(Crédito: Sinister Salad Musikal’s Weblog)

Naquela época, em meados dos anos 90, a juventude brasileira (quando não se agarrava no fenômeno do grunge para sentir-se representada) acabava ficando à margem da cultura e da inserção social. Ok, teve o movimento dos caras pintadas, que deu legitimidade ao anseio de mudança. Mas a descrença no sistema era perceptível, e na área cultural, sem músicas que representassem o momento pelo qual o país passava (além da extinção da Embrafilme), não havia muito o que fazer. Os jovens enfrentavam, sim, um momento de letargia.

Eis que, depois de um período em que nada efetivamente relevante aconteceu no campo cultural, uma turma surgiu disposta a mostrar trabalho e fazer a diferença. Raimundos, Skank, Pato Fu e, posteriormente, os Mamonas Assassinas, começaram a dominar as rádios e os meios de divulgação. O surgimento da MTV, em 1990, foi o passo primordial para resgatar a identidade jovem brasileira (mesmo que, em seu início, ela focasse especificamente nos sons dos grupos americanos). No meio de toda a nova fase que surgia para o rock brasileiro, apareceu aquele que seria o grupo mais relevante dentro do contexto sociológico dos anos 90, e trazendo à tona um novo gênio para a música brasileira: Nação Zumbi, e o senhor Chico Science.

Surgidos em Recife, cidade que não era notoriamente conhecida por seus dotes musicais, os rapazes, ao lado do Mundo Livre S/A, colocaram o Manguebeat (gênero musical originado em terras pernambucanas), no cenário da música brasileira e mundial. Estava contida ali toda a essência sonora do tropicalismo, misturada com a MPB, com raízes nordestinas, com o samba-rock de Jorge Ben, com o rock urbano azeitado por Rio, São Paulo e Brasília, pinceladas fortes de world music, e um diálogo forte com a tecnologia, mostrando que os jovens estavam, sim, antenados no que o futuro reservava. Um tipo de som que discutia todas as mazelas e problemas da sociedade brasileira, sem nunca esquecer a característica mais peculiar do brasileiro: o bom humor. Mesmo com todas as referências, era algo genuinamente brasileiro, poucas vezes visto dentro do contexto cultural do país.

Como bem dizia Science na introdução “Monólogo ao Pé do Ouvido” , inserida na primeira música do álbum, “Banditismo por uma Questão de Classe”: “Modernizar o passado é uma evolução musical”. E não apenas musical. Da abordagem bem-humorada das disparidades sociais contidas em “A Cidade”, passando pela revolta causada pelo sistema de “Da Lama ao Caos”, até chegar na perplexidade do homem em meio a um mundo em constante mudança, em “Computadores Fazem Arte”. Tudo ali era construído de maneira a acordar aquela juventude absorta, no sentido de inserí-la de vez no caminho para o século XXI.

E ninguém ficou incólume. Os Paralamas do Sucesso, Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Lenine, Fernanda Abreu, O Rappa, Planet Hemp (e Marcelo D2 em sua carreira-solo), Otto, Sepultura, Cássia Eller, Los Hermanos, Pitty, Charlie Brown Jr., entre outros. Todos embarcaram na onda do manguebeat, dando uma sobrevida ao pop e ao rock brasileiro.

Agora, você se pergunta: “Tá, mas o que este álbum tem a ver com a atual situação do país?”. Tudo. Da Lama ao Caos, nos seus 25 anos de existência, mostrou-se um dos trabalhos culturais que mais esteve à frente de seu tempo. Não à toa, é alvo de estudos acadêmicos em relação à sua importância e alcance. De 1994 pra cá, muita coisa mudou no Brasil, mas pouca coisa mudou. O passado foi modernizado, novos comportamentos surgiram e outros ganharam um verniz de novidade, mas dialogam muito mais com o passado, do que qualquer outra coisa. Porém, o ensinamento mais importante contido neste álbum está justamente no seu trecho de abertura:

“O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.”

VIVA CHICO SCIENCE!