O público que lotou o Guairão nesta quarta friorenta não tem do que reclamar. Viu um bom espetáculo, simples e inteligente. E no qual dá pra falar durante a pizza, principalmente pa quem já é mais velho.

O sotaque carioca arrastado, que muitas vezes incomoda a quem não vive o Rio, aqui é leve. E, memso se não o fosse, condiz em tudo com a obra de Nelson Rodrigues, o mais carioca de nossos grandes autores. Para ser universal, canta a tua tribo.

Sob o codinome de Suzana Flag, aqui temos um Nelson em potencial, diluído, com menor número de frases de efeito e algumas relações incestuosas. Num texto que traz os temas e os truques de suspense e continuidade que imortalizaram o estilho folhetinesco escrito e das antigas novelas de rádio e televisão: amor, desejo, sonhos, vingança, ganchos vários, anti-climax, pistas falsas, surpresas se sucedendo… e algumas soluções simplistas que soam hoje hilárias, como o vilão – vingativo – ser um hipnotizador . É claro queo pequeno mundo onde coexistem os personagens soa forçado hoje, quando as filhas do Folhetim, as novelas, se desenvolveram em vários e sofisticados núcleos de ação.

Mas essas coisas nos eram muito verdadeiras, na época. Não víamos o truque, sofríamos seu efeito.

Os Fodidos Privelegiados contruiram um espetáculo simples e inteligente. Optaram por não se baasear numa estética e num acento de época (o que foi muito bem realizado pelo marcante Melodrama, de Henrique Diaz, há alguns anos), foram conomicos nas marcações e nos figurinos, dentro de uma moldura cenográfica leve, instigante, sensual e uma sonoplastia pontual que ultrapassa o estilo e a época. Tiveram a arte de não cometer exageros criativos (e poderiam , facilmente, a tentação é grande) o que poderia desviar da trama e tornar o espetáculo uma coleção de piadas.

Brincar em manter a forma da narrativa literária, geralmente os próprios atores narrando as ações, emoções e pensamentos de seus personagens, permite uma variada gama de brincadeiras. Parece fácil, mas não é, dar vida aos narradores. As soluções cênicas criadas a partir da integração dos 12 atores garantem um ritmo constante. As cenas vivenciadas por uma dupla de personagens e completada por imagens ao fundo, feitas por duplas de atores representadno os mesmos personagens, no entanto, poderiam ter variações mais interesantes, que mostrassem distorções, aspectos opostos ou complementares da dupla principal.Mas essa é a vantagem do espetáculo: nos possibilita, até no sincita, a imaginar outras possibilidades. Quer coisa mais teatral?

Falando nisso, há um momento de simples, inesperado e puro recurso teatral. Até aquele momento, brincava-se com o literário (narrativa) e o teatral servia-lhe como ferramenta . Mas, de repente, o rapaz se joga no mar para salvar a moça: uma corda é levantada por dois atores, como fosse a linha do mar, a luz muda e o ator altera seu gestual, como quem está nadando embaixo da água. O público aplaude em cena aberta, celebrando esta arte rica onde compactuamos em fingir a vida.

A criação das personagens, transitando entre levemente teatral e o caricato, ajuda a direção, através do elenco, a insertar no espetáculo – como linguagem – imagens visuais, sons onomatopaicos que vão desde expressões de emoção até a representação de objetos ou a criação de climas. E tal criação deixa clara à afirmação do crítico Décio de Almeida Prado: os personagens de Nelson não são psicológicos, são antes a irrupção, no cotidiano de impulsos primitivos, elementares.

Sinto, apenas, que o espetáculo poderia ter, após uma boa primeira metade cômica, levemente debochada, entrado um pouco na dramaticidade do melodrama, seu elemento emocional mais marcante. Lembro das radionovelas e das primeiras novelas de tv, compostas de bastante tensão. Acreditávamos naqueles clichês, desejávamos aquelas soluções. Conseguíamos ver-nos como seres humanos naquelas aventuras psicológicas e emocionais. Se essa dramaticidade ocorrece no terceiro quarto da peça, poderia atingir o público num nível mais profundo de identificação.

Mas é apenas uma opinião, aliás propiciada pelo bom gosto do que vi.

Teatro bom é aquele que nos motiva a pensar e ter idéias.