Da Cidade de Deus, Washington Junior ‘rima’ prata no Mundial com vaga para Tóquio

João Prata - Estadão Conteúdo

“Agora eu vou rimar na improvisação, medalhei no Mundial de Dubai, o meu nome é Shitão. Agora eu vou rimar, eu não sou Pinóquio, além de medalhar eu fiz o índice para Tóquio”. Washington Junior resumiu bem sua estreia na competição paralímpica que acontece nos Emirados Árabes Unidos. Ele garantiu a prata nos 100 metros da classe T-47 (amputados membros superiores) e ajudou o Brasil a fazer um histórico pódio triplo – Petrúcio Ferreira foi ouro e Yohansson Nascimento terminou com o bronze.

A rima remete também a um passado não tão distante, de uma infância dura na Cidade de Deus, uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro. Washington é um sobrevivente de lá. Ele conviveu com o tráfico de drogas, viu muitos “descer a sepultura”, como ele diz, ficou sem treinar muitas vezes por causa de tiroteio, mas saiu dessa por um detalhe.

O sonho na infância era se tornar jogador de futebol e atuar na Europa como Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar, seus três ídolos. “Era só mandar para mim na esquerda, botava para correr, cortava para o meio e boom”, contou em entrevista ao Estado. Um dia, indo para mais uma pelada com os amigos na Cidade de Deus, uma amiga da mãe de Shitão, o chamou e contou que fazia parte de um projeto esportivo para pessoas com deficiência.

Washington nasceu com má formação congênita no braço direito. “A Dona Norma me deu um livro com todas as modalidades e um cartão do Jorge Chocolate, que hoje é atleta T-12, de baixa visão. Naquela época ele era guia. Dei uma folheada e não encontrei o futebol. Mas tinha o atletismo. Meu primeiro pensamento foi procurar o atletismo para ganhar preparo físico e ficar mais resistente para o futebol. Liguei para o Chocolate”, pensou.

Os primeiros treinos serviram para conhecer outros atletas e perceber que o atletismo poderia render viagens ao redor do mundo. “Pensei: ‘se eles podem, eu também posso’. E aí o futebol foi ficando de lado”. A realidade, no entanto, ainda era bastante dura. Nesse período, Washington morava com a mãe e a irmã de sete anos. O pai havia saído de casa, mas sempre manteve contato com ele. Para ajudar com as contas, o garoto passou a vender picolé na praia e doce no ônibus.

“Meu lazer era jogar bola. E quando apertava fazia minha correria. Para muitos eu ia ser um marginal, um bandido, que não ia ter futuro, mas graças à Dona Norma pude mudar de vida para melhor. Mudei o pensamento e mudei de vida”, comentou. Foi nessa época também que Washington conheceu na comunidade as Batalhas de Rima. Os garotos se reuniam e faziam ‘duelos’ com rima e provocação. “Já faz tempo isso viu, nem lembro direito”, disse.

Ele fala com orgulho do lugar onde foi criado, onde sua mãe vive até hoje. Mas um atleta de alto rendimento não tem como viver ali. Por causa dos toques de recolher, Washington começou a perder muitos treinos. “Tem muito tiroteio na Cidade de Deus. Então ficava em desvantagem com meus adversários”, explicou.

A solução encontrada há um ano e oito meses foi se mudar para São Paulo e trabalhar duro no Centro de Treinamento Paralímpico. “No início foi um pouco diferente por causa da questão de clima. Ficava bastante resfriado. Depois fui me adaptando e evoluí bastante vindo para o CT, onde consegui melhorar meus resultados até chegar no Mundial”, conta.

A meta de Washington em Dubai era baixar sua melhor marca, até então em 10s83 e terminar no pódio. Na terça-feira, ele fez uma prova espetacular. “Foi a melhor largada da vida dele”, comentou Yohansson Nascimento, que tem 11 medalhas em mundiais e treina diariamente com o amigo. Washington liderou os 30 primeiros metros e depois só foi superado por Petrúcio, o atleta paralímpico mais rápido entre todas as classes. “O menor deu trabalho, viu?”, brincou o medalhista de ouro.

Washington cruzou a linha de chegada após 10s58. Com bem disse na rima, ele não é Pinóquio, conquistou o pódio e o índice para Tóquio-2020.