Lydia (Holly Grainger) e Jean (Anna Paquin) são duas mulheres muito diferentes, com um ponto em comum: ambas vivem numa cidadezinha escocesa, durante o ano de 1952. Lydia é operária, um tanto revoltada, mãe de um filho e casada com um estroina que a deixou sem eira nem beira. Jean Markham é uma médica sofisticada, que exerce sua profissão de forma conscienciosa, mas nem por isso goza da estima da comunidade. As duas são as protagonistas do drama Fale com as Abelhas, dirigido por Annabel Jankel e adaptado do romance de Fiona Shaw. Um filme de corpo e alma femininos, como se vê.

No entanto, o outro personagem importante é um garoto de dez anos, Charlie (Gregor Selkirk), filho de Lydia. Charlie fez amizade com a doutora Jean, pois esta é apicultora e o garoto se interessa pelas abelhas. Aliás, há um fundo, digamos assim, filosófico, nessa amizade entre o menino e os insetos, e que tem tudo a ver com o título brasileiro, tradução literal do original Tell It to the Bees. Sim, o filme tem, em certas partes, esse ponto de vista infantil, do garoto que, sem muito diálogo com outras pessoas, compensa o vazio da vida real com a fantasia. Conversar com abelhas, em seu mundo, pode ser uma saída, e um alívio. E, talvez, até mesmo uma solução em situações graves.

O tom oscila entre o realista e o romanesco. As condições de vida são duras no interior escocês. E as pessoas mostram as virtudes e os problemas das comunidades pequenas. São mais próximas, mas também mais intrusivas. As relações sociais são rígidas, em esquema patriarcal fundamentalista e com pouca abertura para transgressões.

Na aproximação entre Lydia e Jean há muito de sororidade (solidariedade entre mulheres), mas pode haver alguma coisa a mais. Em especial quando Lydia briga na fábrica, é despedida, e vê-se ameaçada de despejo da casa onde mora com o filho. A médica acolhe a mulher e o filho. Da intimidade nasce uma grande amizade, que a comunidade, vigilante, considera, bem… talvez próxima demais.

Não deixa de ser curioso que, em ambiente tão feminino, seja o filho homem que, em narração retrospectiva, evoque os fatos como eles se deram. Charlie é como um representante masculino neste mundo feminino que lhe é dado frequentar. Em certo momento, ele será como um representante do pai ausente da casa, Robert (Emun Elliott). Robert não é propriamente um vilão de almanaque, mas alguém que voltou da guerra “diferente”, como acontecia com frequência naquele tempo. Quem enfrentou a morte e a barbárie, e talvez tenha sido ferido, ou matado outras pessoas, nunca retorna igual, ainda que fisicamente inteiro.

Em todo caso, Robert, de quem se sabe pouco mais que isso, parece um representante típico do patriarcado popular do pós-guerra. Para ele, a bela esposa é apenas um objeto sexual, a ser possuído no momento de desejo e depois posto de lado. Aos poucos irá se afastar da família, deixando-a no desamparo, inclusive econômico. Mas ensaia um retorno quando se dá conta ou desconfia do que possa estar acontecendo entre Lydia e Jean.

Com essa armação dramática, o filme trata de temas espinhosos como a violência doméstica, agressão sexual, preconceitos e homofobia. As mulheres são culpabilizadas pelo que a moral média considera desvios de conduta. Lydia é uma infortunada, mas ninguém tem muita pena dela, pois seus males são consequência de um caráter “selvagem”. Isto é, insubmisso nas relações de autoridade com seus superiores e com os homens. Já Jean é vista, de cara, como uma estranha no ninho. Filha de um médico local, foi fazer seus estudos na cidade grande, morou muito tempo fora e só voltou ao vilarejo com a morte do pai. De quem, aliás, herdou, além da casa e clientela, as famosas colmeias que cultiva no jardim.

Embora não isento de determinados clichês (visuais inclusive), Fale com as Abelhas é um bonito filme. Sensível, não simplifica sentimentos difíceis e nem evita o que de mais cru pode existir nos relacionamentos humanos. Também não busca chantagear o espectador com emoções fáceis, pois trata de um amor difícil e que portanto deve ser encarado com seriedade. Amor árduo e complicado, sobretudo na época em que a história se passa.

Anna Paquin, que a gente lembra como a garotinha de O Piano (1993), o grande filme de Jane Campion, faz uma doutora Jean bastante sóbria e, ao mesmo tempo, intensa. Holly Grainger compõe uma personagem sofrida, mas que nem por isso perde sua sensualidade. Sem essa pulsão erótica a imantar algumas cenas, o filme não funcionaria. Ou funcionaria muito menos bem.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.