Em Clara – Uma Fotobiografia (Numa Editora/Editora PUC-Rio) há um depoimento da cantora Elba Ramalho que sintetiza uma das impressões que saltam – ou deveria – aos olhos de quem percorre as quase 200 páginas com centenas de fotos do livro organizado por Júlio Diniz: “Não tem um show meu em que eu não me sintonize com ela”, declara Elba.

A sintonia a qual Elba se refere remete a algo não apenas espiritual. Clara Nunes trouxe para a música brasileira – embora nem sempre isso seja reconhecido – um jeito de se apropriar do palco ainda inédito para a época em que ela viveu seu auge da carreira, entre 1974 até sua morte precoce, em 1983, vítima de complicações de uma cirurgia de varizes.

Em uma linha evolutiva da música popular brasileira, Clara marcou um ponto fundamental. Sim, Carmem Miranda e seus balangandãs foram importantes, embora servissem a um propósito cinematográfico. Entre suas contemporâneas, Gal Costa só tomou posse total do palco em 1979, no show Gal Tropical, quando abandonou sua aura hippie. Maria Bethânia o fez de forma comedida, sempre em cima de pontuais marcações. Elis Regina se cercou de diretores e coreógrafos para ter a segurança de ir além do centro do palco.

Tem um pouco de Clara em Elba. Tem outro tanto de Clara em Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Maria Rita, Mariene de Castro, Luedji Luna, Ludmilla, Anitta e tantas outras cantoras – por mais absurda que essa afirmação pareça para algumas pessoas. O que Clara perseguiu e alcançou foi ser livre no palco, em muitos aspectos.

“O corpo da Clara canta. A roupa dela participa. Ela é o somatório de voz mais performance, além de uma simpatia e carisma enormes. Uma carreira curta, com um fim muito trágico, que deixou uma herança gigantesca. Clara ajuda a entender o presente (da música brasileira)”, avalia Diniz, que é professor de literatura da PUC – Rio e pesquisador da música brasileira.

Isso está registrado em cada foto escolhida para o livro. Nele, há registro de fotógrafos como Wilton Montenegro, autor da lendária foto que ilustra a capa do álbum Esperança, de 1979, com Clara cercada por crianças no Morro da Saúde, no centro do Rio de Janeiro. Algo tão forte quanto os dois meninos retratados por Cafi para o disco Clube da Esquina.

A relação com o branco e com as religiões africanas

Um dos textos do livro – são seis no total, além de depoimentos de personalidades como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Alcione, Nana Caymmi e Marisa Monte – escrito pela pesquisador Aza Njeri, doutora em Literaturas Africanas, coloca outro elemento importante na trajetória de Clara.

Intitulado de A Iansãnica Clara Nunes, em referência à divindade iorubá da qual ela se declarava “filha”, o artigo mostra como levou o debate sobre a cultura dos terreiros de matrizes africanas – e é impossível dissociá-los do samba – para o palco e para a sociedade por meio de suas canções. Não era difícil ver Clara em um clipe do Fantástico acompanhada por referências a sua religião.

Impulso esse nascido depois de uma viagem à Angola e de inspiração em Carmen e Clementina de Jesus. Clara talvez não tivesse a ancestralidade na raça, mas a tinha em sua voz.

“Clara introduz o branco (de forma religiosa) e uma relação com religiões de matrizes africanas que não existia anteriormente. Ela pula de algo folclórico levando tudo isso para o palco, mas sem transformar isso em algo sagrado. Era no lugar do profano que o sagrado se instaura”, afirma Diniz.

Uma cantora vitoriosa e bem brasileira

Todo esse sincretismo – a pedido de Clara, o letrista Paulo César Pinheiro fez o samba Portela na Avenida, que compara o desfile de sua escola de coração ao manto de Nossa Senhora Aparecida – fez de Clara uma cantora totalmente brasileira.

Um País reproduzido nas primeiras fotos de Clara – Uma Fotobiografia, com imagens da Folia de Reis registradas pelo fotógrafo franco-brasileiro Marcel Gautherot que servem para contextualizar as origens de Clara no distrito de Cedro, atual Caetanópolis, no interior de Minas Gerais, onde a cantora nasceu. O pai de Clara, Mané Serrador, foi quem levou o festejo católico para lá – e despertou a propensão da filha pela música.

“É a Clara Guimarães Rosa, a Clara das Gerais, que vai para o Rio de Janeiro sem perder a essência de Minas Gerais, da infância dela e do trabalho como operária. Ela mesma dizia que tinha saído de uma fábrica de tecidos para se tornar uma tecelã da música brasileira”, diz Diniz.

Outro texto do livro, escrito pelo pesquisador Rodrigo Faour, percorre toda a discografia de Clara. De seus primeiros discos como cantora de bolero e outros gêneros até o grande encontro com o samba, no início dos anos 1970.

Clara não gostava de ser chamada de sambista. Muito menos de ‘sambeira’, um corruptela derivada de sambista com macumbeira, algo totalmente pejorativo, com objetivo de desmerecê-la. Preferia dizer que uma cantora de música popular brasileira. De fato, gravou Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, entre outros.

Outro feito: foi a primeira mulher a vender verdadeiramente discos no mercado musical brasileiro. Com Conto de Areia, seu grande sucesso de 1974, passou a marca das 500 mil cópias. Depois disso, o caminho foi aberto para as demais.

Diniz, que se declara fã da de Clara, diz que a fotobiografia – há um biografia da cantora, Clara Nunes – Guerreira da Utopia (2009/2017), escrita pelo jornalista Vagner Fernandes – ajuda a trazer Clara para um mundo atual.

“Por algum motivo, Clara é uma cantora de outro tempo. Quase analógica. Talvez pela necessidade de transformação das musas da indústria do entretenimento e, obviamente, pelo surgimento de novas vozes e gerações que se sucederam após sua morte”, diz.

*Clara Nunes – Uma Fotobiografia

*Júlio Diniz (org.)

*Numa Editora/Editora PUC-Rio

*208 páginas

*R$ 90