Viver em cidades cada vez mais abarrotadas de gente parece ser o destino inexorável reservado ao mundo deste século XXI. O fenômeno das megacidades torna-se avassalador. Hoje, das quinze maiores, doze estão na Ásia, sendo Shanghai, Delhi, Karachi, Istambul, Mumbai as primeiras. Moscou, São Paulo e a cidade do México são as exceções. O indiano Suketu Mehta resolveu deixar as comodidades de Nova York para retornar com a família para a sua Mumbai. O resultado está no livro Bombaim, cidade máxima, uma leitura crua e fascinante.
Na Índia a troca de nomes é uma epidemia. Madras agora é Chennai, Calcutá virou Kolkata, um parlamentar quer mudar o nome do país para Bharat e Bombaim virou Mumbai, onde 50% dos bombainenses é favelada, vivendo em 6% do território da cidade. Ai que está Dharavi, uma das maiores favelas do planeta, onde tudo se recicla, tudo se produz. Com um milhão de moradores, tem uma criativa economia que produz cerca de 600 milhões de dólares anuais. Quando chove Dharavi é um charco. Chove assim por causa dos nossos pecados. Nem Deus aceita Bombaim, diz um jovem ilhado, sem alternativa. A ONU, lamentando suas incapacidades, diz que 828 milhões de pessoas moram em favelas no mundo em desenvolvimento.
A classe média guerreia por espaço, por um ar respirável, minuto a minuto. Os aluguéis são caríssimos e os serviços péssimos. É difícil conseguir uma vaga para meu filho na escola do bairro?, pergunta-se ao diretor. É como escalar o Everest, responde ele e aconselha: é preciso matriculá-lo logo ao nascer. Devido à má qualidade da água, o bem mais precioso, a disenteria e as doenças de transmissão hídrica dizimam as crianças. Metade da população masculina não tem vaso sanitário onde defecar e por isso o faz fora, nas calçadas, na beira de córregos, em baixo das árvores. Um cineasta instalou câmeras ocultas por toda parte e produziu o famoso filme Bumbay no qual retrata pessoas aliviando-se em banheiros naturais. Não há uma só mulher no filme. Elas o fazem entre 2 e 5 da manhã e com isso mantém a privacidade. O Banco Mundial estudou o problema e sugeriu instalar 100 mil sanitários, o que pioraria cem vezes a situação, pois os milhares existentes estão imundos e entupidos. Na Índia os preceitos de higiene são pouco difundidos e o indiano só conserva limpo o próprio espaço. Abrir uma janela e aspirar o ar da manhã é sempre uma má experiência. O ar condicionado é a solução, mas, como tudo, vez ou outra precisa manutenção. Na terra onde a resposta habitual é não, qualquer conserto nunca é feito da primeira vez. Há que estabelecer uma relação com o bombeiro, o eletricista, o homem do telefone. A propina é uma instituição para trocar o não pelo sim e um botijão de gás, em geral cheio pela metade e olhe lá, só sai com pistolão. Apesar de tudo, Bombaim, ou Mumbai segue crescendo. A zona metropolitana que hoje abriga 19 milhões, deve chegar ao limite teoricamente suportável de 22 milhões em 2015.
O governo é socialista e nele o desafio seguinte é conseguir moradia. A Lei do Inquilinato, aprovada em 1947 e desde então prorrogada, proíbe o reajuste do aluguel e o despejo do inquilino que o pagar regularmente. A moradia vai passando de pai para filho, para os netos e tataranetos. Para conseguir o apartamento de volta o proprietário (que nunca faz reformas nem consertos) paga um valor elevado para que o inquilino concorde em sair. As calçadas são palcos de batalha permanentes: pedestres lutam pelo direito de andar, os sem-teto as usam para dormir, os ambulantes reclamam o direito de subsistência, os automóveis querem estacionar. Numa sociedade de castas, os empregados se multiplicam ao infinito. Nem a empregada nem a faxineira limpam o chão, pois é tarefa de um banghi, da classe mais baixa e que só faz isso.
O trânsito segue o modelo asiático, ou seja, é um caos que combina carros de luxo com carroceiros, vacas, pedestres, motos e milhares de tuc-tucs, os riquixás motorizados (um triciclo com uma capota sob a qual se instalam dois passageiros), invariavelmente buzinando sem parar. Trens e o metrô são soluções para quem ama o perigo e aceita o desconforto total de ter todos os lados do corpo amoldados por dez outros. Viajar como pingente, no estribo (onde sempre há lugar para mais um), ou no teto, é um risco principalmente nas passagens pelas estreitas ruas dos subúrbios.
Por quê morar numa cidade assim? As razões são comuns a outras megalópoles: os parentes, aqui tenho influência, há quem dependa de mim, como onde e o que quiser e por mais que a rotina seja infernal, é possível encontrar poesia onde menos se espera. A verdade é que as pessoas não conseguem sair da megalópole, tornam-se prisioneiras em um cárcere que só na aparência é livre e voluntário. Há alternativa? Ma Xiangmim diz que sim. É o consultor em planejamento urbano do projeto que unirá nove cidades – entre elas Guangzhou e Shenzhen – no Delta do rio Pearl junto ao mar do sul da China formando uma comunidade de 42 milhões de pessoas que se conectará com a vizinha Hong Kong. Os moradores poderão viajar livremente a baixo custo, diz ele, usufruindo de redes de transporte rápido, energia, escolas, saúde, telecomunicações. O futuro é um mundo novo.             

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional