Gabriela Silva – Susana Ventura é vencedora de prêmios literários como o Jabuti e o Glória Pondé.

No segmento infantojuvenil a autoria feminina tem discrepâncias menores 

Era uma vez… nobres que se reuniam nos salões da corte francesa para trocar conhecimento. Os encontros da aristocracia eram comuns e frequentes e oportunizavam a troca de conhecimento, baseados na literatura, poesia, filosofia. As mulheres tinham um papel importante nesses eventos que se realizavam principalmente na Paris do século 17. Muitos contos de fadas, escritos por elas, surgiram naquele período.

Apesar de terem reivindicado e obtido o reconhecimento como escritoras, seus nomes não ficaram muito conhecidos. Ao contrário, os homens desde sempre tiveram seu trabalho aprovado e aclamado mais facilmente.

Na literatura infantojuvenil a autoria feminina aparentemente tem discrepâncias um pouco menores. Sempre coube às mulheres a tarefa e o papel mais presentes na infância. No entanto, os desafios ainda são muitos uma vez que as condições de produção e de publicação continuam desiguais.

Sobre esse assunto, entrevisto a professora universitária, mestre e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, Susana Ventura. Ela tem 40 livros publicados, sendo a maioria deles destinada aos jovens leitores. É vencedora de prêmios literários como o Jabuti e o Glória Pondé da Biblioteca Nacional e participa de grupos diversos de trabalho sobre literatura.

Susana pesquisa literatura de autoria feminina, contos de fadas e literaturas produzidas em língua portuguesa na contemporaneidade. Seus livros e atividades são abordados no blog susanaventura.blogspot.com 

A autora finalizou recentemente o livro Sete contos que nunca me contaram: contos de fadas pensados, ouvidos, escritos e recontados por mulheres e uma campanha de financiamento coletivo segue em andamento para a publicação pela Editora Biruta.

Acompanhe aqui um pequeno universo do estudo e do trabalho de Susana.

 

TD – Na sua opinião, qual a melhor ligação que se pode fazer entre as mulheres e os contos de fadas?

SV – Acho que os contos de fadas nos falam muito de perto. A associação com as mulheres no Ocidente, especialmente com as mulheres mais velhas é muito antiga e creio que seja por dois motivos: o papel de manutenção de uma parte importante da memória é relacionado a elas e também uma “depreciação” de coisa menor, que, em geral é feita por mulheres. Platão (século IV a.C.), em Górgias, fala sobre as narrativas populares de cunho maravilhoso contadas oralmente como “contos de velhas viúvas”. Nessa obra Platão coloca na boca de Sócrates uma fala dirigida a Cálicles: “É possível que consideres tudo isso uma simples história de velhas, que só merece o teu desprezo. Não fora nada extraordinário que nós também a desprezássemos, se em nossas investigações encontrássemos algo melhor e mais verdadeiro. Mas, como viste, vós três, os mais sábios Helenos do nosso tempo, tu, Polo e Górgias, não fostes capazes de demonstrar que devemos viver uma vida diferente desta, que se nos revelou vantajosa até mesmo no outro mundo” (tradução de Carlos Alberto Nunes). A professora e pesquisadora britânica Marina Warner, uma das grandes especialistas em contos de fadas do século XX, nos diz sobre essa menção de Platão: “Platão, no Górgias, referiu-se depreciativamente ao tipo de conto – mythos graós, o conto das velhas – narrado pelas amas para divertir ou assustar crianças. Possivelmente, trata-se da mais remota referência ao gênero. Segundo relatos, quando os meninos e meninas de Atenas estavam prestes a embarcar para Creta, para serem sacrificados ao Minotauro, velhas senhoras desciam até o porto para lhes contar histórias e distraí-los de seu sofrimento”. O próximo ponto de referência importante para a história dos contos é a publicação de O asno de Ouro, por Apuleio no século II d.C. que traz encaixado e atribuído a uma velha senhora a narrativa do conto de “Cupido e Psiquê”. E qual a circunstância em que a narração ocorre? A senhora em questão é uma velha encarregada de vigiar e cuidar de uma jovem raptada, Cáride, num cativeiro. Para mitigar o sofrimento de Cáride ela irá se dispor a contar uma bela história. Em muitas outras grandes narrativas escritas ao longo dos séculos seguintes, as mulheres serão consideradas “as narradoras por excelência”. Ficarei em dois exemplos: a história moldura de Scheherazade, nas Mil e uma noites (as narrativas começaram a ser publicadas no século XI), as cinquenta histórias contadas por dez velhas esquisitas a uma grávida indócil em O conto dos contos, de Giambattista Basile (transição do século XVI para o XVII).  Você percebe que as mulheres foram sendo consideradas narradoras orais e muitas vezes depreciadas também. Tudo muda no século XVII francês quando um grupo de mulheres começa a publicar contos literários e uma delas, Marie-Cathérine d´Aulnoy (1650-1705) coloca no que está publicando o “rótulo” de “conto de fadas”. Seu contemporâneo Charles Perrault, que publica ao mesmo tempo que ela, ainda rotula seus contos de “histórias dos tempos passados”, “contos da mamãe Gansa” – aludindo a essa “tradição” inventada de que os contos eram histórias de velhas senhoras, como vinha sendo consagrado. As mulheres e homens em torno de Marie-Cathérine publicam vários livros e acabam por estabelecer o nome pelo qual o gênero ficaria conhecido. Especialmente representativas eram as mulheres dessa espécie de movimento e deixavam claro, já nos próprios livros, que se consideravam escritoras, detentoras de saber e que mereciam ser consideradas como tal.

TD – Apesar de serem mais leitoras que os homens (de acordo com pesquisas do Retratos da Leitura), as mulheres ainda enfrentam maior dificuldade para serem publicadas?

SV – A publicação e especialmente a publicização do que se escreve mudou muito nos últimos dez anos. Hoje é muito mais fácil publicar do que há vinte ou trinta anos. O que varia é o suporte e o livro impresso não é mais a única alternativa e, especialmente, o que cada pessoa almeja para o que está produzindo. Se o objetivo é ter sua obra publicada por uma editora com grande capilaridade no Brasil e reconhecimento pelo público e crítica, naturalmente a concorrência é maior. Não considero mais difícil para uma mulher ser publicada do que um homem ser publicado desde que ambos possam apresentar seus originais em pé de igualdade. O que realmente me parece desigual é a condição de produção de homens e mulheres: como dedicar tempo à escrita se às mulheres cabe uma carga maior de trabalho e uma remuneração mais baixa? Como ter seu tempo de escrita respeitado nesta sociedade? Quantas famílias respeitam o tempo necessário à criação? E há bastante controvérsia sobre valores oferecidos em caso de adiantamentos e vendas de direitos para adaptações, em que costuma haver, sim, diferença a maior para os escritores homens.

TD – Há não muito tempo era imperativo usar um pseudônimo masculino para publicar um livro. Isso ainda ocorre? As dificuldades são menores para a publicação de livros infantojuvenis?

SV – Continuando a questão anterior: J.K. Rowling não se assina assim por acaso. As iniciais tinham por objetivo camuflar a identidade da autora. Ao longo dos últimos séculos muitas mulheres usaram pseudônimos masculinos para poderem publicar e competir: da espanhola Cecilia Bohl de Faber (Fernán Caballero) à britânica Mary Ann Evans (George Eliot). Ainda hoje há quem apresente originais sob pseudônimo ou adote nomes masculinos ao participar em concursos literários, para aumentar suas chances de aceitação. Na área do infantojuvenil aparentemente isso não ocorre, uma vez que o território da infância sempre foi considerado um território de e para mulheres, devotadas ao cuidado e à produção de materiais para a infância. No entanto, se escavarmos um pouco, algumas discrepâncias aparecem e apontam para a mesma tônica:  o trabalho dos homens é reconhecido mais rapidamente e, por vezes, considerado melhor porque é feito por um homem. Na hora de atribuir elogios – embora a própria prática de fazer isso seja questionável – é bem mais fácil ouvir “brilhante”, “gênio” e “maravilhoso” para o trabalho de um homem.

TD – Como você avalia o caminho percorrido pelas escritoras brasileiras?

SV – Historicamente temos escritoras notáveis, mas cujas conquistas vão sendo apagadas tão logo elas morrem ou até mesmo antes disso. Um exemplo: Júlia Lopes de Almeida, uma escritora maravilhosa, considerada a escritora mais representativa da geração de Machado de Assis – quantos a conhecem? Ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras e, cogitada para uma cadeira, teve a candidatura descartada por ser mulher. Ofereceram a vaga que seria dela para seu marido, que também era escritor. O tempo não corrigiu essa discrepância. Pouco lida e pouco lembrada, foi uma grande escritora. Nos dias atuais muitas escritoras têm conquistado os mais importantes prêmios e eu me pergunto: será que a escrita da História vai apagá-las também?

TD – Na sua opinião, quem são as mulheres que se destacaram escrevendo histórias infantis?

SV – Muitas e incríveis ao longo do último século, que é o que eu mais estudo. Não seria justo mencionar algumas apenas, mas temos uma literatura para crianças e jovens de grande qualidade no Brasil. Não por acaso temos dois prêmios Hans Christian Andersen e um prêmio ALMA (Astrid Lindgren), os mais importantes do mundo, vencidos por escritoras brasileiras.

TD – Você recebeu prêmios literários como o Jabuti e Glória Pondé, de reconhecimento por seu trabalho. Trabalho esse que valoriza grandemente personagens femininas. Quem são essas mulheres?

SV – Em O caderno da avó Clara (Prêmio Jabuti) eu tenho personagens femininas bastante representativas. São três gerações: Clara, que aparece através de seu caderno de histórias recontadas e das memórias que seu filho tem dela; Fabiana, a mãe da protagonista, que é professora universitária e pesquisadora, que sai do país para uma pesquisa e deixa sua filha, neta de Clara aos cuidados do pai, seu ex-marido; e Mari, de onze anos, a narradora principal da história. A história se passa nos anos de 2014 e 2015, quando Mari tem sua primeira experiência de convivência com o pai e encontra o caderno da avó numa estante que está no quarto que vai ocupar. As mulheres da narrativa e as que surgem do caderno da avó são muitas e diferentes, mostrando modos muito diferentes de estar no mundo. O caderno da avó Clara é um livro que segue a lógica das Mil e uma noites, em que uma narrativa principal, a história de Mari, dá lugar, em alguns pontos, à narrativa encaixada, no caso os escritos da avó Clara. Eu voltaria às histórias centradas em personagens femininas em dois livros posteriores, Um lençol de infinitos fios, de 2019 (Prêmio Glória Pondé da Biblioteca Nacional em 2020 e finalista do Jabuti 2020) e Contos ancestrais de mulheres valentes, também de 2019. Um lençol de infinitos fiostem duas narradoras principais, a menina Maria, de dez anos e a jovem Ludmi, de dezesseis. São imigrantes, ambas, uma da Bolívia, outra do Haiti, e as questões que trazem para o livro dizem respeito à imigração e aos modos de acolhimento, sobretudo. Contos ancestrais de mulheres valentes foi um projeto muito especial. Nele trabalhei com contos tradicionais do continente africano em que as mulheres têm papel central e preponderante.

TD – Nos contos clássicos, os escritores eram os homens (embora tenham recolhido as histórias das “mamães gansas”, as contadoras), mas as personagens eram mulheres na maioria. Isso era reflexo daquele período da História?

SV – Acho que é reflexo da estrutura das sociedades como um todo. Ainda hoje as posições consideradas subalternas “podem” ser ocupadas por mulheres, mas os lugares de prestígio são quase sempre privilégio masculino. Na sua questão há também a sutileza do “lugar” atribuído à oralidade em oposição àquele da escrita. A escrita como coisa de gente escolarizada, prestigiosa, legitimadora, e a oralidade menor, coisas de mulheres e pessoas menos “estudadas”. Ainda espelhando os “contos de velhas, coisas sem importância” que, quando “merecem” destaque é pela intervenção de algum homem que “imortaliza pela cultura escrita” aquela contribuição.

TD – Como são as mulheres dos contos de fadas? Elas têm afinidades entre si?

SV – O primeiro movimento em torno do que conhecemos como “Conto de fadas” se deu na França do século XVII onde os salões eram um importante ponto de encontro, troca de informações e construção de conhecimentos. Neles as mulheres tinham papel de destaque e muitas escritoras publicaram a partir do movimento que havia neles. A maior efervescência se deu na década de 1690 e, por quase um século, até 1789, uma quantidade imensa de obras seria publicada, grande parte delas de autoria feminina. Sendo a França, mais especificamente Paris, o epicentro do movimento, muitas das escritoras se conheciam.

TD – Na sua opinião, a Emília, de Monteiro Lobato, pode ser considerada a personagem mais representativa do feminino contemporâneo?

SV – Emília é uma grande personagem, sem dúvida. Inovadora, alegre, irreverente, questionadora, inteligente, ela foi um furacão na vida de várias gerações de leitores. Emília surge na primeira narrativa que Lobato viria depois a desdobrar: “A menina do nariz arrebitado”, que saiu no Natal de 1920. Passaram-se cem anos e muitas têm sido as grandes personagens femininas da literatura brasileira destinada aos jovens: Raquel, de A bolsa amarela de Lygia Bojunga; Ana de Ana Z. onde vai você,de Marina Colasanti; Bel de Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado; e, mais recentemente Aurora, de Pena de Ganso, de Nilma Lacerda; Tayó, de O mundo no Back Power de Tayó, de Kiusam de Oliveira; a donzela guerreira Sargento Verde, de As aventuras de Sargento Verde, de Helena Gomes, muitas delas arrojadas, valentes e questionadoras.

TD – Mônica (Mauricio de Souza) e Mafalda (Quino), também têm personalidades fortes. Como você as definiria?

SV – Aprecio demais serem protagonistas de histórias em quadrinhos, esse gênero que demorou a ser considerado como literatura e como arte. São meninas sem medo de serem quem são, questionadoras, descobrindo o mundo de uma maneira que não seria pensado antes ser possível para uma menina.

TD – O que o protagonismo feminino nos ensina, tanto quando pensamos nas escritoras quanto nas personagens?

SV – Para mim ensina que parte da humanidade esteve ali mas foi sempre considerada subalterna, submissa e sem protagonismo, condenada a ser permanentemente acessória. E que após muitos embates isso está mudando.

TD – Esse protagonismo é diverso quando o foco está em mulheres de diferentes localidades do planeta? Em quê?

SV – Com toda a certeza é diferente. É diferente até na mesma cidade, que dirá no planeta. Depende de muitos fatores: sociais, raciais e de classe social. Cada individualidade está sujeita às suas particularidades e as sociedades se articulam em esferas de legitimação e deslegitimação, de reconhecimento e não reconhecimento. Então escrever a história pessoal e a história social desse protagonismo é estar atravessada por todas as circunstâncias.

 

*Fonte de pesquisa para temas e entrevistas: Instituto Fatum.