A escravidão no Brasil foi extinta oficialmente há 132 anos. E esse oficialmente não é apenas um detalhe de estilo, basta ler os textos dos primeiros anos da suposta libertação, para ter uma ideia do estado em que a população negra passou a viver, após o 13 de maio de 1888.

Um pouco de história não faz mal a ninguém e ajuda a evitar gafes, como muitas cometidas hoje em dia, inclusive por autoridades. Para começar, com a Lei Áurea, o contingente de seres humanos escravizados não recebeu um único centavo de indenização, nem foi alvo de nenhum programa de inserção no sistema econômico, sequer um plano de inclusão na sociedade. No prolongamento dessa omissão tem-se que os descendentes de africanos, que na época constituíam a maior parte dos habitantes das grandes cidades brasileiras, foram jogados ao léu, sem recursos, sem emprego, porque ninguém aceitava pagar salário a quem até pouco antes trabalhava de graça; sem nenhum apoio assistencial. Em tais circunstâncias havia poucas alternativas de sobrevivência: ou cair na marginalidade, ou continuar no regime de servidão em troca de um prato de comida e um canto para dormir. Mas os tratos continuavam os mesmos: trabalho árduo noite e dia, sem direito algum, e em caso de insatisfação do patrão, espancamentos, açoites, tudo igual como era antes. Leia-se o livro Infância, de Graciliano Ramos, um relato autobiográfico, bem realista do autor quando criança, nos últimos anos do século XIX, portanto, nas primeiras décadas após a Lei Áurea, para ter uma visão bem clara do tipo de liberdade que foi oferecida aos escravos.

Mas a principal consequência dessa chaga histórica ainda não foi a dificuldade de sobrevivência material do contingente de seres abandonados ao deus dará. O resultado mais nocivo desse erro histórico, que continua até hoje como um vírus que perverte a razão das pessoas, é o racismo, uma doença que atinge grande parte da população branca, cuja transmissão é hereditária, para a qual não se encontrou uma vacina eficaz. A humanidade tem criado alguns antídotos para essa calamidade, tais como universidades, livros, seminários, debate de ideias, mas a contaminação é silenciosa, e a pessoa infectada adquire tal nível de invulnerabilidade que é difícil tratá-la. Sem falar que, muitas vezes, o contágio se dá no meio familiar, onde as estratégias profiláticas surtem pouco efeito. Eu mesmo me lembro de quando era criança, viver num meio onde se ouvia coisas do tipo “coitado, não tem culpa de ser negro, mas que reconheça o lugar dele”. Sem falar no acervo interminável de piadas para ridicularizar qualquer atitude de uma pessoa negra.

Hoje no Brasil, a população mais ilustrada assiste estarrecida a um retrocesso nunca antes sequer imaginado. Temos uma autoridade à frente de uma instituição responsável pelas políticas dos direitos dos negros, fazendo campanha de difamação contra Zumbi dos Palmares, o símbolo da consciência negra no Brasil, e como se não bastasse essa atrocidade, afirmar que a escravidão foi benéfica aos negros, que eles viviam melhor no tempo do cativeiro; e que o movimento negro de hoje é uma escória. Essas declarações infames, que por si mesmas provocam repúdio, se tornam ainda mais aterradoras quando se sabe que saiu da boca de um negro, ele próprio, certamente, com histórico de discriminação por causa da cor da pele. E para finalizar a sessão de horrores, vale lembrar o depoimento do atual presidente da República, a personificação mais perfeita do atraso intelectual e da involução mental, dizer numa entrevista a uma emissora de televisão, que não sabia da existência de escravidão no Brasil, pois ele próprio nunca tivera escravos.

Conclui-se, de tudo isso, que o racismo é um desdobramento genuíno da ignorância, mas essa explicação não é suficiente, e acaba, inclusive, naturalizando uma mentalidade que deve ser combatida diariamente e sem tréguas. Pode-se ainda avançar um pouco e supor que a ignorância é filha legítima do medo do conhecimento. Desde que o conhecimento foi associado à luz, ele causou desconfiança para muita gente, porque viver no espaço limitado das sombras é mais seguro, pois o mundo parece bem menor e mais tranquilo, garantido por certezas inquestionáveis. Vislumbrar os grandes horizontes iluminados pelo sol da inteligência causa muita aflição para àquelas pessoas inseguras, que não ousam sequer imaginar outros mundos possíveis no solo movediço das incertezas. Mas a verdade é que quando a gente vê pela televisão as imagens de um negro adulto ser estrangulado em via pública, ao vivo, visto pelo mundo inteiro, por um policial branco, por causa de uma nota de vinte dólares, supostamente falsa; quando vemos que um menino negro de cinco anos, filho de uma empregada doméstica também negra, abandonado num elevador e conduzido à morte pela patroa branca, concluímos que o racismo é como esse vírus que assola o mundo, a origem até pode ser investigada, mas como qualquer pandemia mortal, precisa ser extirpado como um tumor que gangrena a inteligência, tratado como uma cegueira que impede o doente de ver o mundo com a variedade de cores com que a natureza foi criada.

O gaúcho Ademir Furtado é graduado em Letras pela UFRGS, escritor, autor dos romances Se eu olhar pra trás (Editora Dublinense) e O conto do anu (Editora Age)